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Opinião

Fim de jogo

Criativamente, campanhas do Super Bowl ficaram aquém dos investimentos milionários para as marcas aparecerem no evento


17 de fevereiro de 2025 - 6h00

Vamos bater um papo sobre o que entendemos ser o grande momento da propaganda mundial: o Super Bowl. Na sua 59ª edição, foram 59 marcas, cada uma pagando em média US$ 7 milhões por inserção para impactar 127,7 milhões de pessoas, contando TV e streaming. Isso se considerarmos somente o dia da final, mas sabemos que também existe todo um esforço antes e depois do jogo. Uma oportunidade única para cada uma dessas 59 marcas, e a conclusão mais comum foi a de que fora do campo a principal tática foi jogar de forma segura, usando a fórmula já testada e aprovada: grandes celebridades, humor, temas leves e deixando qualquer grande tema político-social de fora. Se o Super Bowl for dar o tom do mercado em 2025, navegaremos em águas mornas.

No ranking dos cinco melhores anúncios, de acordo com o AdMeter do USA Today: Budweiser com seus clássicos Clydesdales, Lay’s tocando corações com as famílias que cultivam suas batatas, Michelob Ultra com seu humor leve, mostrando que não deveríamos duvidar de seus jogadores senior; Stella Artois e a descoberta de que David Beckham tem um irmão gêmeo americano, que parece o Matt Damon, e a NFL mostrando que toda criança é alguém que importa.

Aparentemente deu tudo certo, ninguém se expôs nas redes sociais e, pelo que pude analisar, só um comercial gerou uma certa polarização de conversas, a campanha da He Gets Us sobre Jesus Cristo, e a crítica questionou se todo esse dinheiro poderia ter sido melhor investido. Curioso só cobrarem isso de Jesus Cristo, mas dá para entender. No atual ambiente político dos Estados Unidos, somado aos movimentos de políticas anti-diversidade que estamos vendo pelo mundo, podemos dizer que esse era o cenário esperado. Nada de novo sob o sol, e foi justamente isso que levou um momento tão grande para nosso mercado – quando existe uma expectativa de vermos o que vai moldar o futuro da indústria, quais peças entrarão para a história – a ter um resultado final tão morno. Eu vou sempre achar curiosa a decisão de fazer um investimento desse tamanho para não criar nada que vá transcender o evento em si. Eu não tenho dúvidas de que as marcas vão mostrar picos de menções, aumento de intenção de compra, grande alcance e afins, porém, olhando como alguém que tem uma grande paixão por criatividade, eu torcia por uma barra mais alta.

O contraponto foi o show do Kendrick Lamar no tão esperado intervalo do jogo. Se de um lado as marcas colocaram o pé no freio, Kendrick acelerou sem olhar para trás. Se formos falar de branding de uma forma geral, ele mostrou que tem consistência, clareza do seu ponto de vista e não tem receio de expressá-lo em uma das maiores oportunidades e plataformas a que teve acesso, mesmo (ou até por isso) sabendo que o faria na frente do novo presidente dos Estados Unidos.

Quando anunciaram o nome do Kendrick Lamar para o intervalo do Super Bowl, em setembro do ano passado, não faltaram receios e críticas sobre sua escolha. Por um lado alguns fãs estavam preocupados que o formato limitaria o artista e o forçaria a mostrar uma versão mais editada do seu trabalho e performance, por ser um show televisionado para tanta gente. Por outro lado, os críticos o acharam político demais e mostraram o usual preconceito com o hip hop e rap como escolha para o que consideram um grande palco pop. E, como bem disse Andrew R. Chow, em sua análise para a Time, “O superpoder de Lamar tem sido sua habilidade única de navegar nessa tensão exata entre mensagem e alcance: contar histórias de dor e opressão americanas sem parecer sermão; desafiar o público liricamente e musicalmente enquanto amplia seu público. E no domingo esse ato de equilíbrio estava em plena exibição.”.

Kendrick Lamar foi o primeiro rapper solo a ser atração principal do Super Bowl, e nos entregou um desempenho como nunca visto antes. Em uma coletiva de imprensa antes do Super Bowl, perguntaram sobre o que seria sua performance: storytelling. E ele entregou de forma poderosa, fazendo com que o público prestasse atenção e ouvisse o que ele tinha a dizer. E levou essa conversa para além daquele intervalo, deixando gente até hoje debatendo sobre os simbolismos e mensagens que ele trouxe ao palco.

A performance começou com um palco em formato de jogo, algo entre símbolos do Playstation e o jogo da velha. Somos introduzidos ao grande narrador da noite, Samuel L. Jackson, de Uncle Sam, grande símbolo popular do patriotismo e governo estadunidense. Ele dá início ao que chama de “o grande jogo americano”(sic), que podemos entender como uma crítica a um sistema que joga contra as pessoas negras, no qual precisam lutar constantemente pela suas vidas. A gente ouve Tio Sam gritando para o Kendrick – “muito barulhento, muito imprudente, muito gueto”. Kendrick então dá seu recado: “A revolução está prestes a ser televisionada. Você escolheu a hora certa, mas o cara errado”. Durante a apresentação vemos um jogo entre Kendrick e o Tio Sam, que constantemente o desafia. Vemos a formação da bandeira dos EUA dividida ao meio durante Humble. As cores azul, branca e vermelha imperaram nas roupas e cenografia. SZA e Lamar cantam o sucesso All the stars, canção que teve um papel cultural importante no filme Pantera Negra. Ele atendeu as expectativas e cantou Not like us, música que na mesma semana deu a ele cinco Grammys, incluindo “Música do Ano”, com participação especial de sua conterrânea Serena Williams, além de todo o contexto da briga com o Drake. Ele nos lembra que não somos como eles, nos manda desligar a TV e decreta o fim do jogo.
Kendrick escreveu mais um capítulo da sua história, usou a oportunidade que tinha para continuar levando sua mensagem a um público cada vez maior. Sem medo. De fato, Kendrick, a audiência não é burra. Parabéns. Fim de jogo.

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