Fui à Paraíba e lembrei-me de você
Quantas referências você tem que vêm de Nova York? Londres? E quantas vêm de João Pessoa? Recife?
Quantas referências você tem que vêm de Nova York? Londres? E quantas vêm de João Pessoa? Recife?
Para embalar esta leitura sugiro a música Mourão, de César Guerra-Peixe. Logo mais fecho o arco dessa referência. Recentemente, fiz uma expedição pela Paraíba, mais precisamente pelo Cariri Paraibano, inspirada por uma amiga que é uma das pessoas que mais entendem de Brasil que eu conheço, Neli Pereira. Desde que conheci Neli, dividimos além de bons drinks e boas histórias, uma infinidade de referências que me fazem desejar mais Brasil, conhecer tudo que está próximo, porém, eu acabo deixando distante. Essa expedição foi desenhada pelos irmãos Pablo e Thiago Buriti, junto com Ronaldo Fraga, para nos apresentar um Nordeste além das praias, um tal de Brasil profundo que antes eu tinha visto pelas lentes de clássicos do cinema nacional, documentários e algumas aulas de geografia de outrora. Um Brasil que você acha que conhece. Na verdade, se eu considerar a quantidade de reports que já li, vídeos que vi e palestras que fui sobre o Brasil, eu te diria que conheço relativamente bastante. Mas ouvir e viver são coisas bem diferentes. Neli, se estivesse comigo agora, diria: “Não diga reports, diga relatórios”. Abrasileirar é preciso.
A viagem tem uma narrativa bem desenhada, que se constrói ao longo de cinco dias. Começa na Pedra do Ingá, um monumento arqueológico com desenhos rupestres entalhados em rochas, a maioria em uma principal de 50 metros de comprimento e três metros de altura, um tesouro arqueológico mundial cheio de mistérios. As figuras entalhadas sugerem animais, frutas, humanos e constelações como a de Órion. Uns dizem que tem origem fenícia, outros, egípcia, uns até dizem vir de outro planeta, mas até agora o seu significado não foi decifrado. Ver de perto esse monumento, logo ali na Paraíba, já nos dá uma primeira pista de onde essa narrativa vai nos levar: a gente se acha pouco, mas deveria se sentir muito. Você conhece mais sobre a Pedra do Ingá ou Stonehenge?
Vou pular para o final, porque aqui só temos uma página. A viagem tem como última parada a Fazenda Carnaúba, em Taperoá. Passamos o dia com Manuel Suassuna. Manu, filho de Ariano, mantém, alimenta e propaga o legado de seu pai e nos apresentou o conceito de Avoenga: “substantivo feminino, patrimônio deixado após o encantamento do Pai. Direito de suceder em bens dos antepassados”. Taperoá foi a cidade onde Ariano passou boa parte da infância, ali entre a caatinga e o sertão, tão vivos em suas obras. Vou assumir que todos conhecem Ariano Suassuna e pelo menos um clássico de sua obra: O Auto da Compadecida. Talvez não pela leitura, mas pelo cinema, obra que nos enche de orgulho e que foi filmada em Cabaceiras, um outro ponto dessa viagem, e que é conhecida como a “Roliúde Nordestina”. Roliúde, assim mesmo, um centro do audiovisual brasileiro que talvez você também não tenha ideia da importância. Eu não tinha. Manu me fez reconectar com um sentimento de orgulho de um Brasil que Ariano enxergava e que, arrisco dizer, se um dia tivemos, fomos perdendo ao longo das décadas. Suassuna dedicou grande parte da sua vida e obra ao Movimento Armorial e o sustentou como uma forma de resistência cultural. O movimento buscava criar uma arte erudita a partir das raízes populares brasileiras, principalmente as nordestinas. Ele queria construir uma identidade cultural que não dependesse da influência dos Estados Unidos, da Europa, mas que se inspirasse nas nossas tradições, como o folclore, o cordel, o mamulengo, o romanceiro e tantas outras expressões artísticas ricas que temos. O termo “armorial” vem da palavra “armories”, que se refere àqueles brasões e emblemas de famílias, heráldicos, remetendo à ideia de uma tradição nobre e autêntica. Suassuna acreditava que essas manifestações populares do Nordeste tinham o mesmo valor artístico que as grandes tradições europeias e tinha uma ambição e vontade de buscar uma espécie de renascimento e valorização dessas nossas raízes. O quanto você estudou e aprendeu sobre o Movimento Armorial na escola? Espero que bem mais do que eu.
O Movimento Armorial surgiu no Brasil na década de 1970, com seu marco no dia 18 de outubro de 1970, em Recife, Pernambuco. Inicialmente o movimento expressou-se, na música, por nomes como Cussy de Almeida, Capiba e, aqui fechamos o arco, Guerra-Peixe. Mourão, que mencionei no início do texto, foi co-composta com Clóvis Pereira e, na versão que estou ouvindo, com a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo, é um belo exemplo do uso de ritmos populares brasileiros e elementos da cultura folclórica. Na pintura de Francisco Brennand, na gravura de Gilvan Samico; no cinema de George Jonas; no romance de Maximiano Campos, na poesia de Janice Japiassu; na escultura de Fernando Lopes e tantos outros. Um universo de referências que, em uma indústria criativa como a nossa, que bebe tanto da cultura popular, podiam ocupar mais espaço. Quantas referências você tem que vêm de Nova York? Londres? E quantas vêm de João Pessoa? Recife?
E já que estou no tema referências, divido uma que é um presente estético. Em 1969, Suassuna roteirizou, com a direção de George Jonas, a primeira versão do filme que então foi chamado de A Compadecida. O figurino do filme é do Francisco Brennand, e a cenografia da Lina Bo Bardi. Preciso dizer mais? Você encontra facilmente no YouTube.
Termino com a frase de Ariano que me inspirou para este artigo: “Não tenho nada contra ninguém. O que eu quero é fortalecer a nossa cultura, porque aí qualquer coisa que nos venha de fora, em vez de ser influência que nos esmaga, que nos descaracteriza, que nos corrompe, passa a ser uma incorporação que nos enriquece”.
Tem Stonehenge, e também tem Pedra do Ingá. Tem Hollywood, e tem Roliúde Nordestina. Tem Modernismo, e tem Armorial. A maior sorte que eu vou ter com este artigo é se, ao final dele, nada do que eu contei for novidade para você. Mas se for, então bora abrasileirar.
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