Assinar

Hospitalidade ou trauma hospitalar?

Buscar
Publicidade
Opinião

Hospitalidade ou trauma hospitalar?

Lógica de negócio justifica instalação de cafés e restaurantes em complexos hospitalares, mas isso pode afetar percepção de suas marcas


13 de maio de 2024 - 6h00

A presença de lojas, cafés e restaurantes dentro de hospitais se tornou um fenômeno cada vez mais comum nos últimos anos. Essa tendência reflete a busca por um ambiente hospitalar mais humanizado e acolhedor, que ofereça aos pacientes, seus familiares e visitantes uma experiência mais completa e agradável.

Pensando racionalmente parece bastante intuitivo interpretar que os consumidores de hoje são mais conscientes e exigentes e esperam que o hospital ofereça mais do que apenas serviços médicos, mas também um ambiente acolhedor e que propicie o bem-estar físico e emocional. Além disso, com o avanço da medicina, os procedimentos médicos se tornaram mais complexos, o que resulta em internações mais longas. Isso faz com que os pacientes e seus respectivos acompanhantes passem mais tempo no hospital, aumentando a necessidade de opções de lazer e entretenimento. Há também muitas áreas ociosas em grande parte dos prédios hospitalares que em mais de 72% no País herdam projetos de engenharia de 50 anos ou mais nos quais a organização, circulação e aproveitamento dos espaços é obsoleta para os padrões atuais, portanto, a exploração comercial dentro dos hospitais pode gerar uma importante fonte de renda para a instituição, que pode ser utilizada para investir em melhorias na infraestrutura e nos serviços prestados.

Tudo muito interessante e propício na perspectiva empresarial, como suprir as expectativas de acolhimento e humanização com as pessoas num ambiente que dado o cenário é sempre delicado do ponto de vista emocional e psicológico. Só faltou pensar no efeito residual para o frequentador desses espaços, que olhando de fora e friamente parece improvável, mas faço do meu testemunho um ponto de reflexão para quem trabalha no ramo.

Ano passado, lidei com a internação de meu filho, ainda um bebê que com menos de um mês de vida precisou passar três semanas na UTI. Ao contrário do que acontece em grande parte das vezes com recém-nascidos que seguem pós-parto para uma UTI neonatal, meu caso foi distinto: Lorenzo já estava em casa e teve que, emergencialmente, ir para um pronto atendimento. Acabamos indo ao Sírio Libanês pela proximidade com minha residência. Essa informação é importante no meu relato, pois o Sírio, em São Paulo, é um hospital que não tem maternidade. Aquele ambiente que per se atenua a carga negativa do ambiente hospitalar, pois se trata de um ambiente de vida, luz e de representar o momento mais feliz na vida das famílias: o nascimento de uma criança. Em hospitais com maternidade é flagrante que a presença de lojas, cafés e restaurantes é pioneira por todo o arcabouço de maior fluxo de visitantes e necessidade de presentes para mães e filhos permite que o varejo vocacionado nade de braçada com comércio e serviços. Pois é, no Sírio não há esse contraponto. Estamos num ambiente de alta letalidade, internados com complexidades enormes e muita angústia e sofrimento por corredores e alas.

E foi nesse ambiente que eu passei longas três semanas almoçando e jantando no Arábia e no Capim Santo. O que no primeiro momento foi um alento, dada a vulnerabilidade do momento e o fato de poder usufruir de um serviço e pratos que eu, por coincidência, já conhecia e gostava muito. Mas meu relato é ruim: faz mais de um ano que não como no Arábia. Quando penso em comida árabe, eu me permito até ir a outras opções, mas o Arábia me dá gatilhos absurdos com os quais não tenho a menor vontade de lidar. No caso do Capim Santo também tenho lá minhas sequelas, mas não consegui evitar frequentar porque é um dos lugares dos quais minha esposa mais gosta e só de pensar em dividir isso com ela me censuro pra não resgatar aquele período tão difícil que vivemos, portanto, passo por cima e quando ela solicita, almoçamos lá muito a contragosto, agora publicamente testemunhado aqui.

Antes de concluir, registro que não gosto de fazer uso deste espaço nem para temas de cunho pessoal e nem pra retratar bolhas elitistas privilegiadas que fazem um recorte efêmero na linha “white people problems”, mas tenho absoluta consciência de que é um tema de hospitais particulares, marcas de restaurantes nada populares e assumo aqui a inadequação pouco acessível e democrática dessa pauta – mas acho um gancho muito importante de se refletir.

A oportunidade de mercado, o ganho comercial, a demanda reprimida de pacientes e acompanhantes valem um trauma dessa ordem. Não faria mais sentido talvez o Arábia ter uma marca “white label” para oferecer seus deliciosos pratos nos hospitais? Será mesmo que aquele café famoso ali também no mesmo hospital constrói atenuantes no momento ou associações infelizmente nocivas em médio e longo prazos? Antes de escrever tudo isso, informalmente conversei com pessoas que relataram impressões e sentimentos parecidos com os meus. Também pesquisei sobre o fato de que boa parcela do faturamento desses lugares é proveniente do corpo clínico desses hospitais – que não tem nada com este tipo de relato, pois se trata apenas de sortimento e qualidade no próprio ambiente de trabalho. Enfim, dilemas de um mundo cada vez mais complexo no ambiente de marcas e consumo.

Publicidade

Compartilhe

Veja também

  • Marcas: a tênue linha entre memória e esquecimento

    Tudo o que esquecemos advém do fato de estarmos operando no modo automático da existência

  • Preço do sucesso

    Avanço da inteligência artificial encoraja multinacionais a mudarem políticas de remuneração de agências, mas adoção de success fee esbarra na falta de métricas e na baixa transparência das relações comerciais