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Iluminando o presente

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Opinião

Iluminando o presente

Vivemos tempos coalhados de análises constrangedoras sobre temas que passaram a fazer parte do nosso presente como polarizacão, por exemplo, mas que não conseguimos analisa-la devidamente se não nos distanciarmos um pouco


16 de setembro de 2024 - 6h00

Passei dois terços do mês de agosto em repouso, olhando para baixo sem poder ler, nem escrever e com contato restrito a telas. Era essa a condição para garantir uma recuperação satisfatória de uma cirurgia no olho a que fui submetida para reverter um descolamento de retina. Agora que estou aos poucos retomando minhas atividades e rotinas, a noção de tempo e espaço ainda está um pouco borrada, especialmente em relação às coisas que fiz no primeiro semestre. Parece que ficou há muito tempo. Guardadas todas as diferenças e proporções, é uma sensação parecida com a volta às atividades presenciais no pós-pandemia. Tudo que aconteceu antes da Covid-19 remonta a um outro tempo, quase uma outra vida.

Durante esses dias de recolhimento, os áudios do WhatsApp me salvaram, assim como podcasts e audiolivros. Finalmente, consegui assistir às 3,5 horas de Eras Tour e dar o braço a torcer para meu filho de 12 anos que Taylor Swift é realmente muito talentosa e uma excelente letrista. Também comprei ingressos para a última turnê do Gilberto Gil, claro que por meio de uma grande amiga, mas íamos trocando áudios em tempo real enquanto ela estava na fila virtual do site da Eventim. Mas talvez a audição mais incrível destes dias de molho foi a do podcast Agora, Agora e mais Agora, do historiador, escritor e deputado português Rui Tavares.

A série foi gravada em 2020, durante a primeira onda da Covid-19, enquanto Tavares preparava o livro de mesmo nome. Já comprei o livro, mas como ainda não estou liberada clinicamente para leituras extensas, está no topo na minha pilha na mesinha de cabeceira. O podcast (e o livro) tem como proposta uma viagem ao passado no que chama de “seis memórias do último milênio”, que se espraiam do século 10 d.C., no coração da Idade Média, a 1948, quando os países-membros das Nações Unidas aprovaram a Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Os 32 episódios do programa, com produção do jornal Público, cumprem a promessa de ajudar o ouvinte a pensar o tempo histórico num ritmo que, embora distante das urgências presentes, é capaz de as iluminar num cruzamento aparentemente caótico entre história, filosofia e política.

O historiador e homem público português, com mandatos parlamentares na Comunidade Europeia e em Lisboa, prefere calibrar a perspectiva de futuro pelo olhar crítico sobre o passado. E faz isso usando como grande recurso a memória. Citando Pascal, Tavares descreve a memória como plástica e maleável, matéria-prima da imaginação e identidade, coragem e medo. “Essa dobra, esse ponto de viragem do nascimento da memória”, escreve ele, “é o que faz de nós pessoas”.

O próprio título Agora, agora e mais agora é, em si, uma peripécia da memória. Ele remete a uma história familiar do autor, mais especificamente de sua bisavó, Carolina Tavares, que após sobreviver a um AVC se comunicava apenas por meio de palavras soltas e sem sentido e a única frase inteira que dizia era exatamente Agora, agora e mais agora, que com variações de entonação poderia expressar dúvida, perplexidade, exasperação, urgência. Às vezes, tudo isso ao mesmo tempo.

Filtrada por séculos de história e pela perspicácia do neto, a frase de dona Carolina resume os momentos decisivos em que pensadores, escritores e intelectuais, solapados por impasses de seu tempo, se dispõem a enfrentá-los, na crítica e na ação. Cada uma das “memórias” evoca um tema decisivo da história, um “agora” pretérito que se projeta sobre os “agoras” correntes: fanatismo, polarização, globalização, emancipação e direitos humanos.

Isso explica os aspectos mais literários de suas falas, mas a eles se somam certa oralidade e bom humor que se aproximam de uma conversa entre amigos — até porque a estrutura do podcast é a de um diálogo entre a voz solitária de Tavares e o público.

Tavares propõe pelo menos três níveis de leitura para seu percurso. Antes de mais nada, o que se conta — e se ouve com grande prazer no podcast narrado por ele — são histórias que “nos permitem fazer pensar no presente” a partir de Dante ou Spinoza, Al Farabi, o filósofo muçulmano, ou Bertha Lutz, a feminista brasileira que participou da redação da Carta das Nações Unidas. Em cada um desses episódios, estão, num nível mais avançado, os meandros específicos de cada “agora” e suas conexões complexas. Em conjunto, e de forma mais conceitual, formariam o que ele chama de “história alternativa da modernidade”.

Em tempos de presentes incertos e impermanentes, escutar Rui Tavares foi um bálsamo e me fez pensar sobre como nossa obssessão por saber navegar o futuro nos distancia daquilo sobre o qual literalmente acabamos nos esquecendo: nossa história pretérita, nossa memória. Além disso, ele nos presenteia — só para usar a mesma palavra que significa enxergar o que esta à nossa frente — de um jeito despretensioso e cativante sobre o poder da nossa capacidade de contar histórias e interpretá-las.

Enquanto muitos de nós entronizam pessoas que se autodenominam “futuristas”, Agora, agora e mais agora é um sopro de lucidez, narrativa inspiradora e sinapses improváveis que alimentam o raso debate intelectual deste Brasil de 2024. Vivemos tempos coalhados de análises constrangedoras sobre temas que passaram a fazer parte do nosso presente como polarizacão, por exemplo, mas que não conseguimos analisa-la devidamente se não nos distanciarmos um pouco. E, por que não, olharmos o passado? Afinal, o presente (e o futuro) é feito de muitos agoras!

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