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Opinião

Isso também vai passar

Momentos felizes e os “de quebra” na profissão passam, e o que não passou internalizei no que chamo de mais terapia, menos fórmulas prontas e mágicas


3 de fevereiro de 2025 - 6h00

Este é um texto escrito após o recesso. Não espere grandes concatenações, nem a redação “minhas férias”. A mente foi levemente marinada em caipirinhas – servidas em copo de plástico – e encontra-se bem descansada. Uma cabeça mais trabalhada no ócio raiz do que no ócio criativo. Porque, como já disse o Emicida, no ócio eu gosto de cortar a unha do dedão do pé, sem pensar nos afazeres. É preciso abrir uma pausa para o descanso genuíno, aquele que você esquece em que dia da semana está. Faço isso religiosamente (mesmo sem ter uma religião) por um motivo de saúde mental, mas também por uma razão que já expliquei em um texto: as pessoas mais chatas que conheci só eram felizes no trabalho.

Dito isso, precisamos falar sobre a experiência brutal que é a transição da batida de coco para aquele whey sacudido numa garrafa plástica com uma bolinha de metal no meio. E da dor que é colocar a primeira calça jeans depois de um tempo na praia.

Quando eu era pequeno, na aula de natação tinha um exercício para aprender a ficar mais tempo submerso. Bolinhas de gude ou moedas eram jogadas no fundo da piscina e o desafio proposto era pegar o maior número possível. A turma pulava e logo descobria que não dava para pegar muitas sem o fôlego começar a faltar. Era preciso estabelecer um limite para retornar à superfície e respirar. Se você ultrapassasse esse limite, teria uma boa chance de bater aquele desespero de quem acha que vai se afogar. Invariavelmente, a ânsia de pegar tudo dava uma surra na estratégia e você acabava por engolir água ou subia quase roxo para agarrar a borda da piscina. Meu primeiro vômito, na lembrança, tem gosto de cloro.

Por muitas vezes, eu quase me afoguei olhando para o meu trabalho como quem mergulha na piscina querendo todas aquelas bolinhas de gude. Se eu pegasse cinco, queria dez na próxima vez. Se eu pegasse dez, a meta aumentava automaticamente. E assim, foi por um bom tempo. Até que um dia cansei de me afogar em mim mesmo e procurei um jeito de trabalhar que fizesse mais sentido.

Quando deixei de ficar preocupado em ter todas as moedas ou bolinhas de gude da piscina, consegui voltar para a superfície com as coisas que mais me importam. E muitas delas não são físicas. Acordei metafórico no dia que escrevi isso. Foi mal aí.

Meu amigo Pedro Guerra escreveu um grande livro. Foi a minha primeira leitura do ano. Não vou dar spoilers, mas vou repetir o mantra de um dos personagens: não seja trouxa. Uma escrita afiada, atual e com um grande perigo nas entrelinhas: ironia. E meu pai já dizia que ironia é coisa complicada, porque o tolo toma como verdade. Pedro Guerra usou essa figura de linguagem sem nenhuma moderação, e o resultado é divertido e incômodo.

E por falar de meu pai, tenho refletido sobre o fato de me aproximar da idade com a qual ele faleceu. O desencontro que é você ter a maturidade para conversar sobre as coisas que não entendia naquela época. Os livros que ele lia, as músicas que ouvia, as dores que sentiu. Por ele ter partido cedo, demorei muito para compreender alguns traços da sua personalidade. E foi em um estalo repentino que percebi, muito tardiamente, que meu pai sofria de uma depressão profunda, mas esse não era um assunto conversado à mesa naquela época. Talvez seja um assunto para um livro futuro. Sobre as conversas não faladas.

Trecho de um vídeo que vi algumas vezes: “Vamos remover todas as restrições do fluxo de informação e inundar o mundo com mais e mais informação. Porque mais informação significa mais verdade, mais conhecimento, mais sabedoria e isso simplesmente não é verdade. A maior parte do que circula é lixo. Se você inundar o mundo com mais informação, a verdade vai afundar e não vai mais voltar para a superfície.” Yuval Noah Harari.

“Quando você morre, você não sabe que está morto. Quem sofre são os outros. É a mesma coisa quando você é idiota.” Sempre que essa frase do Ricky Gervais surge na minha frente, eu compartilho. A frase e o trecho do Yuval estão absolutamente conectados.

No fim do ano passado, encontrei um amigo que não via pessoalmente há 20 anos. Junto com ele, outros queridos amigos que a vida virtual reaproximou, mas a vida da gente separou. Foi como se tivesse dado uma pausa de anos no filme da vida e voltasse para o mesmo ponto que pausou. Amizade boa é assim. Precisa de baixa manutenção – o que não significa ausência de preocupação com o outro – não tem cobrança. A vida está corrida para os boletos de pedido de atenção. Amizade de baixa manutenção é gostoso demais.

Tom Hanks me salvou em um discurso. Um pouco ele, um pouco a minha obsessão em arquivos que guardo no caos da minha cabeça. Lembrei daquele vídeo em que ele está reunido com uma nata de atores e ele solta o pensamento: isso também vai passar.

Já tive momentos de quebra nessa profissão, já tive que lidar com a culpa de ter saído de uma cirurgia da minha mãe para estar em uma reunião importante, e todos os fatos que surgiram a partir disso: luto, perdas, dores, questionamentos. Isso passou. E o que não passou completamente, internalizei no que chamo de mais terapia, menos fórmulas prontas e mágicas.

Já tive momentos extremamente felizes, de conquistas. Isso também passou em algum instante. As conquistas dos prêmios, essa busca incessante pelas milhares de bolinhas de gude no fundo da piscina. Tudo isso passa de alguma forma. E o que me baliza é o simples fato de que tudo me ajuda a mensurar a minha desimportância. Se eu ganhar o GP dos GPs, os passarinhos em Camburi continuarão pedindo mamão às sete em ponto, toda manhã; o pescador Dodô me dará o mesmo bom-dia levemente atravessado, alguém me chamará de Cafu, Cazu ou qualquer coisa parecida. E continuarei feliz por poder pisar nesses dois mundos e andar mais tranquilo neles.

Meu amigo Erick Mendonça caminha todos os dias com a sua cachorra pelo trecho da queda do avião em Ubatuba. No mesmo horário. Naquele dia, choveu e ele não saiu de casa. Quem é ateu e viu milagres, como eu, pensa na espiritualidade que ele tem com o lugar. E eu penso na que o lugar tem com ele.

A impermanência das coisas tem uma beleza profunda.

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