Love brand global
A estratégia da construção de imagem da Coreia do Sul e seus paradoxos
A estratégia da construção de imagem da Coreia do Sul e seus paradoxos
A Coreia do Sul é uma love brand global, e isso não é novidade. Todos sabem que K-pop e os doramas são uma febre, mas o que nem todos conhecem é a estratégia por trás da chamada Hallyu (a onda coreana).
Eu entendi a dimensão da paixão que o país desperta quando contei para minha afilhada de dez anos que estava indo para Seul. Ela reagiu com muito mais entusiasmo que eu reagiria na mesma idade com alguém me contando que ia pra Disney. Me pedia fotos para compartilhar na escola, e não só fotos das bandas de K-pop, mas de tudo. O interesse extrapolou a música: a “marca” não é mais sobre um único produto e sim sobre algo intangível maior do que qualquer “atributo” objetivo.
Esse entusiasmo todo fica mais impressionante considerando o contexto da Coreia do Sul: um país que viveu 600 anos em uma dinastia, depois foi dominado pelo Japão e logo após conquistar sua independência passou por uma guerra interna que o dividiu em dois. Depois disso veio uma ditadura militar e a recuperação da democracia chegou somente em 1987. O país que até 1980 era predominantemente rural e quase ninguém sabia onde ficava, se tornou uma potência tecnológica, galgou seu lugar entre uma das maiores economias do mundo e hoje é uma paixão global por seus produtos culturais.
E nada foi por acaso. Na viagem para Seul ano passado, tive aula com sociólogos, representantes do governo e diretores das empresas dessa indústria que contaram sobre como o fenômeno é resultado de uma estratégia de construção de imagem muito bem amarrada de ponta a ponta, como um bom reposicionamento de marca deve ser.
Segundo eles, três fatores principais levaram ao sucesso: a liderança, o sistema e a cultura. E o que isso significa na prática? Primeiro, líderes determinados na iniciativa privada e no governo com uma visão muito clara dos efeitos em cascata, tanto no soft power quanto econômicos, de se investir nessa indústria cultural. A exportação desse produto geraria uma melhoria da imagem nacional, aumento do interesse na cultura e promoveria as demais indústrias sul coreanas como a do turismo e de bens de consumo.
Com isso em vista, desenvolveu-se a estrutura necessária. Um exemplo é a Agência de Conteúdo Criativo da Coreia (KOCCA), agência governamental que apoia toda a cadeia da indústria cultural desde a infraestrutura e suporte de investimento, até no desenvolvimento, produção, distribuição e comercialização, além de treinamento e cursos para profissionais.
Nas “gravadoras”, CEOs empreendedores tinham desde o início o projeto de exportação de um produto de excelência e para isso internalizaram o recrutamento, o treinamento intensivo (muitas vezes controverso) e o agenciamento dos artistas. A exportação focou primeiro no Japão e Ásia com elementos de localização muito bem coordenados, para depois focar no Ocidente. Sem falar no alto investimento em tecnologia.
A cultura favoreceu o sucesso do plano: o espírito altamente empreendedor do coreano, uma cultura peculiar de muita abertura ao risco e decisões rápidas combinadas com disciplina e coletivismo foram chave.
Demorou cerca de três décadas (as Olimpíadas de Seul em 1988 são consideradas um marco do início do processo) para a percepção da imagem do país mudar, mas ninguém mais questiona se foi bem-sucedida. Minha afilhada que o diga.
E por que é interessante olhar para isso? Dois motivos. Primeiro, pela aula de estratégia de negócio e marca. Além de tudo citado acima, eles ainda conseguiram embalar o produto num naming fácil e atraente (tudo da Coreia vem acompanhado do “K-”) e ensinaram que a imagem da marca não precisa, necessariamente, ser construída em cima do produto mais lucrativo e sim do mais atraente (no caso da Coreia, as empresas de tecnologia como Samsung, Hyundai e LG continuam sendo mais significativas no PIB).
Segundo, porque no Brasil esse é um fenômeno cultural que as marcas ainda não se aproximaram tanto quanto poderiam. Somos um dos maiores consumidores de K-Pop no mundo. A música estrangeira mais ouvida no Brasil no Spotify em 2024 é do cantor sul-coreano Jimin e o volume de streams do gênero aumentou 20% no País em 2024. De acordo com uma pesquisa da Ecglobal, 90% dos brasileiros consomem doramas, 55% pelo menos uma vez por semana. Não à toa, a Netflix investiu US$ 2,5 bilhões em produções do país para os próximos quatro anos. Com tudo isso, 2025 é um ano marcado por visitas das bandas de k-pop, além de eventos como o Sam Korea Fest e a K-Wave Fest que terá um “fanmeeting” com um ator da série Round 6.
Mas vale dizer que, mesmo sendo uma onda pronta a ser surfada, nem tudo são flores. Essa love brand tem um rastro que pode ser uma ameaça a sua longevidade. Além da atual crise política, o país enfrenta consequências sociais desse modelo de desenvolvimento econômico que o governo luta para resolver, mas sem sucesso: uma taxa de suicídio altíssima (é a principal causa de morte entre sul-coreanos com idades entre dez e 39 anos) e uma taxa de natalidade no extremo oposto. Sintomas de uma cultura com problemas de alta competitividade no mercado e cobrança por produtividade, sobrecarga de horário de estudo em crianças e adolescentes, pouco tempo de lazer, desigualdade de gênero etc.
Ou seja, a Coreia do Sul está de parabéns no quesito construção de percepção positiva e conexão com o target, mas ainda precisa entender como resolver seus problemas de ESG. A pergunta que fica é: será que sem resolver estes problemas a “marca” conseguirá se manter amada?
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