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Marcas: a tênue linha entre memória e esquecimento

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Opinião

Marcas: a tênue linha entre memória e esquecimento

Tudo o que esquecemos advém do fato de estarmos operando no modo automático da existência


21 de novembro de 2024 - 6h00

Recentemente tivemos a publicação de pesquisas que, ano após ano, revelam quais são as marcas mais lembradas pelos consumidores. Uma análise séria que gerou um índice de verificação reputado. A partir de uma metodologia de pesquisa objetiva, que promete tomar poucos minutos do respondente apressado que quase a contragosto assentiu em fazer parte da investigação, as memórias de marcas vão sendo evocadas e listadas em categorias de produtos que se encontram em disposições diferentes no mercado.

A memória não possui apenas uma dimensão arquivística. Ela é um sistema afetivo complexo de armazenamento e organização de informações a partir da experiência pelos sentidos. Hoje nos escoramos nas mídias como suporte de memória. As tecnologias anteriores, como a escrita e o próprio livro, também são extensões da memória humana. Mas apenas as experiências sensoriais são capazes de produzir memória: cores, sons, formas, texturas, sabores, odores, aromas, códigos, símbolos, imagens e aragens.

A precariedade do processo da memória reside no ato deliberado de não prestarmos atenção naquilo que estamos vivendo, em não conseguirmos fazer “florescer” nada em um ambiente hiperinflacionado de mensagens, como defendeu o pesquisador Matthew Crawford, da Universidade de Virgínia. Ele sugere que pode haver um palhaço andando num triciclo no meio da avenida, fazendo malabarismo com tochas incendiadas e ainda assim, quase ninguém vai prestar atenção nele.

Se ninguém presta atenção, ninguém se lembra. Tudo o que esquecemos advém do fato de estarmos operando no modo automático da existência. O que não significa que não estamos prestando atenção a nada. Significa que temos muitas coisas operando em nosso sistema cognitivo ao mesmo tempo. Dirigir, por exemplo. Enquanto dirigimos estamos prestando atenção no percurso, nos outros motoristas, na sinalização, em quem não respeita a sinalização, no podcast ou na música que estamos ouvindo, na lista de compras ou tarefas que está passando em nossa mente, e também nos eventos recentes de nossa vida. O painel mais luminoso do planeta pode estar instalado no bairro da Glória, no Rio de Janeiro, eu vou perceber a luz enquanto dirijo pelo Aterro, mas não vou prestar atenção na mensagem.

Como podemos afirmar que a memória de marca é realmente uma evocação sensorial e afetiva, e não um reflexo programado, daquilo que arquivamos paulatinamente? Quando respondo sobre a primeira marca que vem em minha mente quando penso em sabonete aquela marca reflete minha escolha no momento da compra? De que adianta ser lembrado, se não será consumido? Eu me lembro por uma convenção cultural ou porque de fato é uma marca que está presente no meu cotidiano?

Durante a pandemia conduzi uma pesquisa sobre os efeitos do confinamento no carioca. Eu, sendo paulista, compreendi que o carioca, depois do primeiro mês trancado em casa, estaria morrendo de saudades do mar, do azul do mar, do cheiro do mar, da areia da praia grudada nos pés. Não. Surpreendentemente, o carioca sentia falta do verde. O Rio é cheio de verde, de árvores, de paredões verdes que delimitam seu pequeno perímetro geográfico. Era essa abstinência da natureza e do verde que afetava os cariocas.

A Natura lançou sua marca sonora a partir da pulsação da vegetação da Amazônia, extraindo som de árvores: galhos balançando suavemente pelo vento produzindo um rumor de folhas. Caminha para uma associação próspera, justamente por seu compromisso com a biodiversidade. Outro uso exemplar é a music brand da Viação Guanabara, que cobre a malha viária da maioria dos estados brasileiros. “Pega o Guanabara e vem” é um verdadeiro brainworm, usado até pra quem não pega o Guanabara.

Com tantas metodologias e tecnologias disponíveis, seria legítimo investigar o fenômeno das memórias de marca a partir da conexão sensorial, da construção das afetividades, de lembranças que comovem e nos levariam sempre mover nosso braço na prateleira do mercado na direção da moça na embalagem de leite condensado. Seria o momento de pensar se as identidades sensoriais se harmonizam com a identidade da marca, e se são de fato, capazes de evocar memórias.

A pergunta adequada seria: “que tipo de memória é essa?”. O fim da era Olivetto deveria ambicionar a nós muito mais ousadia.

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