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Opinião

Marcas, guerras culturais e inteligência artificial

Evolução tecnológica fez o marketing como “guardião da marca” se tornar obsoleto


5 de junho de 2023 - 6h00

É impressionante a velocidade dos avanços da inteligência artificial por parte das marcas  (Crédito: Shutterstock)

Desde que voltei aos bancos escolares para estudar Literatura e Linguística Computacional tenho ficado assombrado com a velocidade dos avanços da inteligência artificial nesta área e do uso (bom e mau) das redes sociais por parte das marcas na crescente polarização decorrente da redução da classe média espremida pela concentração de renda e pelos aumentos de impostos decorrentes da obrigação do Estado em cuidar dos menos privilegiados. Uma população mais educada e com maior acesso à informação naturalmente vai demandar políticas sociais mais justas, tanto por parte de governos quanto de empresas. E uma maior diversidade de pontos de vista obriga a comunicação empresarial a dialogar de uma forma nem sempre coerente com uma opinião pública que não é mais a monolítica “opinião que se publica”, mas sim que faz notar sua fragmentação através de meios que não obedecem a lógica que predominou no século XX.

Neste cenário, é previsível uma reação de grupos que há muito tempo possuem fatias desproporcionais de poder (econômico, financeiro, cultural) e que ambos os lados lancem mãos de recursos tecnológicos para se comunicar entre si e com a sociedade em geral. “Raiva e medo mobilizam as pessoas”, ensinava Steve Bannon, quando ainda estava no governo Trump (https://encurtador.com.br/abnBT). E são “turbinadas” pela lógica de visibilidade determinada pelos algoritmos, e não mais pela estrutura burocrática das empresas de comunicação de massa.

Uma marca que foi tragada para esta batalha sem estar adequadamente preparada foi a Bud Light nos Estados Unidos. A empresa enviou latas de cervejas personalizadas para diversos influencers, incluindo Dylan Mulvaney, uma pessoa transgênero com mais de dez milhões de seguidores no TikTok. A lata foi mostrada em um post, algumas pessoas assumiram que se tratava de um comercial de televisão e rapidamente surgiram comentários nas redes sociais afirmando que ela estaria à venda em bares e supermercados. O que se seguiu foi uma violenta reação dos consumidores mais velhos e mais politicamente conservadores, que eram boa parte do público da marca, e que tomaram as redes sociais para protestar, alcançando uma visibilidade muito maior que a campanha junto aos influencers patrocinados pela AB Inbev (como, por exemplo, neste vídeo, com o rapper Kid Rock literalmente metralhando engradados da marca https://encurtador.com.br/esvw0). O resultado foi um boicote que levou as vendas da cerveja, líder de mercado nos EUA, a uma queda de 28% na comparação anual, com base em dados da Nielsen publicados no The Wall Street Journal.

Evolução das vendas semanais nos EUA, sobre o ano anterior

Fonte: Nielsen/WSJ

A demora (quase duas semanas) e a resposta ambígua da empresa sobre a campanha (afirmando que vai patrocinar iniciativas da Associação dos Veteranos de Guerra e desenvolvendo comerciais voltados para o futebol americano e música country tradicional) só tornaram sua imagem pior, recebendo críticas de todos os lados por não adotar uma posição clara. No Brasil, vivemos episódios semelhantes, mas não tão divisivos socialmente, como na campanha do Bradesco com influencers na “Segunda sem carne” (https://encurtador.com.br/bhqMX) e com a própria Ambev com a campanha de carnaval da Skol, em 2015 (https://encurtador.com.br/ceqIO).

A popularização das tecnologias de inteligência artificial só vai tornar o problema mais agudo, tanto em termos de velocidade quanto de amplitude. Semana passada, a Open AI anunciou a liberação do acesso para a interface de construção de apps para o ChatGPT (https://platform.openai.com/examples) e um dos primeiros testes que fiz foi utilizar os termos mais buscados no Google (via Google Trends) a cada hora e pedir para ele gerar cinco posts distintos sobre uma mesma marca e assunto, cada um adequado para uma das principais redes sociais em uso no Brasil. O resultado é assustador. Em poucos minutos uma pessoa pode gerar dezenas de conteúdos com alta capacidade de indexação. Injete-se nele alguns elementos de “raiva e medo” citados por Bannon e o que temos é um verdadeiro campo minado em termos de mídia social.

O próximo passo agora é agregar imagens e sons (algo que está além da minha capacidade e interesse técnico, mas que pode ser facilmente contratado no mercado) para gerar conteúdos que envolvam marcas, políticos ou personalidades emulando os princípios básicos das boas histórias (tragédias e epopeias), descritos por Aristóteles na Poética: a peripetéia (a noção que algo se transforma em seu oposto), a hamartia (o erro), o reconhecimento (“anagnórisis”, o esclarecimento de uma situação) e a catarse (a “purgação” das emoções através de um acontecimento frequentemente violento). Esta estrutura é bem conhecida e capaz de mobilizar leitores e soldados, espectadores e apoiadores, audiências e multidões há mais de três mil anos, mas sua “sistematização” pelos softwares de IA é questão de tempo, talvez meses.

Dentro dos anunciantes, uma das funções tradicionalmente atribuídas ao marketing é a de ser o “guardião da marca”. A evolução tecnológica e seu impacto na comunicação tornou esta imagem tão ultrapassada quanto a do antigo “guardinha noturno e seu apito”. O que precisamos agora é um misto de Atena (a Deusa da Sabedoria), Pheitó (a ninfa da Persuasão) e o Robocop.

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