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Mudou Cannes ou mudamos nós?

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Opinião

Mudou Cannes ou mudamos nós?

Ideias fora de sintonia com valores contemporâneos levam invariavelmente a dois tipos de trabalhos: os irrelevantes ou, nos piores casos, os ofensivos


27 de junho de 2016 - 14h31

A cada nova edição, o Festival Internacional de Criatividade aponta caminhos que a indústria da comunicação deverá seguir nos próximos anos. Todos os esforços dos organizadores não impedem que a disputa por esse posto de grande influência sobre o mercado fique cada vez mais árdua, com a ascensão de eventos como SXSW e o Burning Man. Existe um quesito, porém, no qual o Cannes Lions segue imbatível.

É na Riviera Francesa, nos primeiros dias do verão europeu, que a publicidade põe à prova seu alinhamento com a evolução do mundo como sociedade. Estar desconectado da cultura e do espírito de seu próprio tempo representa um risco muito maior do que o obsoletismo tecnológico. Ferramentas são reinventadas e superadas em curto espaço. Investimentos benfeitos podem corrigir defasagens nesse campo com certa rapidez. Já ideias fora de sintonia com valores contemporâneos não têm conserto e invariavelmente levam a dois tipos de trabalhos: os irrelevantes ou, nos piores casos, os ofensivos.

Nos primeiros dias do evento deste ano, sob o impacto dos cases do Lions Health, área do evento voltada para os projetos relacionados à saúde, alguns publicitários reclamaram do processo de “healthinification” do Festival. Estão faltando marcas de bens de consumo, apontaram. A constatação é verídica, sem dúvida: basta olhar a lista de prêmios. Mas fica no ar a questão: mudou Cannes, ou mudamos nós?

Há tempos produtos e serviços relacionados a um maior controle e mais informações sobre a saúde das pessoas têm ganhado terreno na disputa pela atenção dos consumidores e na atração de verbas de anunciantes. O que acontece nos palcos e auditórios do Palais retrata uma nova face do jogo, cada vez mais fragmentado entre múltiplas possibilidades de estabelecer uma conexão com públicos de interesse.

O Lions Innovation mais uma vez ampliou sua cobertura de temas e seu espaço físico dentro da estrutura do Festival. Há quem aposte que em dois ou três anos essa área supere de fato o evento original, não só em importância, mas também no próprio tamanho. Em conversas informais, os próprios executivos da holding que controla o Cannes Lions não excluem essa possibilidade, dentro da estratégia para combater a ascensão do já citado SXSW e manter o litoral sul da França como o principal ponto de encontro anual da indústria global da criatividade.

O Lions Entertainment, por sua vez, propôs soluções sinérgicas entre publicidade e entretenimento. O fundador e chefe criativo da Pereira & O’Dell, PJ Pereira, alertou as agências que nesse território a concorrência é com pesos pesados como os estúdios de Hollywood e os astros da música pop, aos quais sobram experiência e eficiência na missão de captar o interesse da audiência, além de vasta capacidade financeira para investimentos.

Nesse sentido, o prêmio da categoria Entertainment for Music entregue à cantora Beyoncé Knowles é emblemático. Ao consagrar o clipe que não diz respeito à publicidade aos olhos viciados que procuram automaticamente uma relação imediata com produtos, os jurados reconheceram, na prática, o discurso uníssono de que tudo é mídia, hoje em dia. Levantando com propriedade a bandeira do empoderamento feminino e pedindo o fim dos abusos policiais por motivação racial, Beyoncé ofereceu uma leitura mais autêntica das grandes questões socioculturais vigentes para seu público do que a maioria das marcas e agências a desfilar pelo Festival.

Pessoalmente, acredito que a negação de que o mundo era muito mais perigoso antes, quando questões como essas não vinham à tona, apenas ampliará a lacuna atual entre a publicidade e o mundo real. Esse trem já partiu.

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