Muito além do esporte

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Opinião

Muito além do esporte

Jogos Olímpicos a serviço do marketing da cidade


15 de agosto de 2024 - 14h00

Jogos Olímpicos, muito mais do que uma competição esportiva e de união entre os povos, representam grandes oportunidades de projeção internacional e exercício do que chamamos marketing da cidade – o movimento caracterizado por meio do acionamento do potencial criativo de grandes centros, atrelado a suas atividades culturais. Nesse contexto, o uso estratégico do city branding faz da cidade uma marca, sendo gerida como tal e vendo acentuado os seus ativos únicos para animar o mercado de maneira constante.

Como exemplo, podemos nos transportar para 2016 e citar os Jogos do Rio de Janeiro. Por aqui, as Olimpíadas se desenrolaram no curso do plano “Rio Sempre Rio”, finalizado ainda em 1995. O processo de produção do “clima olímpico” na cidade, elaborado décadas antes da realização dos Jogos e resultado de esforços municipais, estaduais e federais, informava que a “vez do Rio” havia chegado, sendo essa a grande oportunidade para inserção da cidade no circuito global. É importante destacar que ao longo de sua história, o Rio de Janeiro sofreu diferentes intervenções urbanas que buscavam atender a um projeto político e ideológico específico. O “Rio Sempre Rio”, até então o projeto mais recente, encontrou no contexto específico dos Jogos Olímpicos e Paralímpicos Rio 2016 as condições necessárias para ser implementado, sendo o marco inicial de um modelo de gestão empreendedora neoliberal empregado também em diversas cidades do globo.

O anúncio da escolha da cidade para sediar o evento internacional aconteceu em 02 de outubro de 2009 e traduz bem o momento que o país atravessava. Luiz Inácio Lula da Silva, que finalizava seu segundo mandato à frente da Presidência da República com avaliação positiva recorde, afirmava que o Brasil havia conquistado sua cidadania internacional, fato comprovado pela escolha do país para organizar a Copa do Mundo de 2014 e do Rio de Janeiro para estruturar e sediar os Jogos Olímpicos e Paralímpicos de 2016. O clima de festa e otimismo era apoiado por uma política de criação de empregos formais acompanhada do aumento real do salário mínimo, além de políticas redistributivas como o Programa Bolsa Família, que mirava, entre outras coisas, na redução da desigualdade social no Brasil.

No plano econômico, o alto valor do petróleo no mercado internacional e a descoberta de petróleo na camada pré-sal pela Petrobrás impulsionavam a imagem do país como potência mundial. Ou seja, para além do esporte, os Jogos Olímpicos serviriam para comunicar essa ideia de nação – política e economicamente forte, atuante no cenário internacional e digna de um lugar na mesa dos grandes.

Com isso em mente e foco nos objetivos traçados, o Rio de Janeiro passou a sediar grandes e diferentes eventos de porte internacional: no período de uma década, a cidade recebeu os Jogos Pan Americanos (2007), a conferência Rio+20 (2012), a Copa das Confederações (2013), a Jornada Mundial da Juventude (2013), o ICOM (2013) e a Copa América (2018). Santos Junior, professor e pesquisador do campo, nos conta que os megaeventos “expressam um projeto urbano de renovação e reestruturação da cidade” (2015, p. 28), sendo o discurso em torno dessa pauta acionado para legitimar tal projeto. Por isso, para atender às demandas impostas por cada um deles, e ao mesmo tempo fortalecer a marca da cidade, realizaram-se grandes reformas urbanas no Rio de Janeiro. Veja, junto às atividades culturais, são as estruturas citadinas que vão informar sobre os avanços econômicos, tecnológicos e sociais de um lugar e exercer papel fundamental na consolidação internacional da ideia de nação forte.

Nessa esteira, diversas ruas foram abertas, equipamentos culturais e esportivos foram construídos, o porto foi revitalizado e os transportes públicos, atualizados – atingindo o ápice com a implementação do moderno VLT na região central da cidade. A forma como essas modificações foram feitas, assim como o modelo neoliberal escolhido para a gestão das cidades, não é tema pacífico.

Os reais legados dos inúmeros eventos aqui sediados também são questionáveis. Mas, quando pensamos em marketing da cidade, é possível afirmar que o Rio conseguiu, de muitas formas, atrair os olhares e os investimentos almejados, figurando como destino de parte significativa dos investimentos nacionais à época e sendo reconhecido internacionalmente. Mais recentemente, a atração de grandes eventos como o Web Summit – um dos maiores encontros de tecnologia e inovação do mundo, que também conta com edições em Lisboa, Toronto e Tóquio -, e da reunião da Cúpula do G20 – grupo que reúne as principais economias do globo – confirmam que a estratégia segue sendo implementada na cidade, agora sob o reforço da ideia do Rio como polo tecnológico da América Latina.

Voltando a nossa atenção para os Jogos de 2024, Paris parece ter compreendido bem o poder do marketing da cidade e o potencial de propaganda dos Jogos Olímpicos. Prova disso, é a escolha do local da cerimônia de abertura: o histórico rio Sena e a cintilante Torre Eiffel, que recebeu os atletas ao final do desfile das delegações. Pela primeira vez, a festa que marca o início oficial das competições foi realizada a céu aberto, usando o maior número possível de equipamentos citadinos como parte do espetáculo – elaborado, sobretudo, para a transmissão televisiva. O mergulho no Sena da ministra dos esportes, veiculado dias antes, já anunciava o conjunto de propaganda que organiza a agenda francesa, sendo a despoluição do rio o seu ponto alto: olhar para o futuro, sustentabilidade e tecnologia à serviço da renovação de Paris.

As obras de reconstrução da Catedral de Notre-Dame, gravemente danificada por ocasião de um incêndio, em 2019, também se mantiveram em evidência durante toda a cerimônia – seja compondo o pano de fundo do desfile dos atletas e das apresentações artísticas, seja no filme que mostrou os avanços da restauração, prevista para ser finalizada em dezembro deste ano. Imagens da cidade vista de cima, coreografias pelos telhados de Paris, menções à Mona Lisa e ao Museu do Louvre, entre outros, completaram o show.

A escolha dos locais de prova também é relevante. Ao contrário das Olimpíadas Rio 2016, que concentrou as competições no Parque Olímpico da Barra e no Parque Olímpico de Deodoro – condizente com o projeto de expansão e desenvolvimento da região adotado pela gestão municipal -, com algumas provas sendo realizadas nas areias de Copacabana, os Jogos de 2024 foram além.

Treze arenas estão espalhadas pela capital francesa, outras doze estão na Île-de-France – região que circunda Paris -, e dez espaços estão em diferentes regiões do país – entre estádios de futebol, arenas poliesportivas e, claro, no mar de Teahupo’o, na Polinésia Francesa. Os trinta e cinco locais de prova informam a ambição de Paris em espalhar os Jogos por toda a França e mostrar a rica e diversificada herança cultural do país.

Com isso em mente, exemplos interessantes dessa estratégia estão no uso do Parque Urbano, localizado na Place de la Concorde, de onde é possível avistar a Torre Eiffel, o Obelisco de Luxor, a Avenida Champs-Élysées e outros pontos famosos – em um claro acionamento do potencial turístico da cidade; da região de Versalhes – sede do poder político da França entre os séculos XVII e XVIII e berço da Revolução Francesa; da Ponte Alexandre III – inaugurada em 1900 para a Exposição Universal de Paris, conecta duas margens do Sena no coração da cidade; do Grand Palais – construído para a mesma exposição e famoso por sua ala central (ou nave) e pelo teto de vidro; e dos Invalides – esplanada que remonta o reinado de Luís XIV e que hoje abriga museus e monumentos da história militar francesa, além do túmulo de Napoleão Bonaparte.

O apelo ao legado histórico e turístico da cidade é intimamente conectado ao acionamento das agendas ESG e de inovação. Além da despoluição do rio Sena, o comitê projetou, ao norte de Paris, uma arena de design ecológico, com 80% da superfície coberta com vegetação, inteiramente revestida com alumínio reciclável e base biológica para a maioria dos materiais de construção. A Arena Porte de La Chapelle foi uma das poucas instalações construídas especialmente para os Jogos e servirá como legado cultural e esportivo para a região após o encerramento das competições.

Completando o repertório de inovação, está a modernização da rede de mobilidade urbana de Paris, preocupação similar à que ocorreu no Rio de Janeiro no período pré-olímpico – embora a tímida rede de metrô carioca não se compare à complexa trama parisiense. O país sede de 2024 prometeu criar quatro novas linhas de metrô, além de estender a linha 14 até o aeroporto de Orly e criar uma nova linha de comboio a partir do aeroporto internacional Charles de Gaulle. Muitas destas atualizações, no entanto, só serão concluídas até o ano de 2030.

É importante destacar que, tanto no Rio quanto em Paris, o processo de disputa e de revitalização das áreas da cidade segue uma tendência mundial que remete aos anos 1980 e 1990. Globalmente, a ocupação das partes centrais de diversas metrópoles foi o lema de políticas públicas e privadas.

Com a crise da chamada “reestruturação produtiva” experienciada pelos países desenvolvidos, ainda em meados de 1980, reduziu-se a disposição dos Estados de bem-estar para manter políticas sociais universais e gratuitas e hegemonizou-se a mudança para um modelo neoliberal de gestão: os investimentos públicos tornaram-se cada vez mais pontuais e exclusivistas. O modelo de bem-estar social começou a se desfalecer, dando lugar ao ‘combate’ à chamada ‘degradação urbana’, gerando uma nova onda de intervenções: a de transformar as áreas obsoletas dos grandes centros por meio da construção de grandes equipamentos culturais, ou seja, museus, óperas e afins. A ideia surgiu na mesma França que agora organiza os Jogos Olímpicos 2024, vinda do governo socialista de Mitterand (1916-1996), que buscou erguer sinuosos monumentos arquitetônicos com a finalidade de “aquecer” o mercado imobiliário e da construção civil, dando um lustre “moderno” à figura do governante e revigorando o marketing da cidade.

Tendo à frente as lógicas do capitalismo financeiro e pós-industrial, a centralidade da cultura como ativo econômico, o marketing urbano e as disputas pela memória territorial geraram discussões e práticas em que diferentes imaginários de cidade, convivialidade, criatividade e vida urbana entram em jogo. No contexto de megaeventos como as Olimpíadas e a partir da opção por uma gestão de cidade nos moldes da “cidade-empresa”, o próprio espaço urbano é tratado como mercadoria, sendo objeto constante de disputa e negociação entre o Poder Público, o setor privado e as populações locais, e até mesmo os cidadãos se transformam em consumidores.

Essas proposições nos fazem encarar os Jogos a partir de uma perspectiva muito mais ampla. Com todo o exposto, podemos afirmar que o palco montado em Paris e arredores e o constante apelo aos símbolos culturais e históricos por ocasião das Olimpíadas seguem o objetivo de manter aceso o desejo pela capital francesa, reforçando a marca da cidade. De igual maneira, o imaginário de uma metrópole glamourosa, que une passado e futuro em instalações sustentáveis e inovadoras, é ratificado e o fluxo do capital é assegurado. Conforme aponta Harvey (2005), para além do desenvolvimento social, o urbano sempre foi um elemento essencial no ciclo de desenvolvimento capitalista, sendo a urbanização resultado de negociações e interações entre atores variados, movidos por interesses diversos e, por vezes, conflitantes.

Nos resta acompanhar os desdobramentos dos legados olímpicos e refletir sobre as consequências para a cidade e suas populações. De pronto, no entanto, podemos assegurar que a estratégia de marketing desenhada pelo país sede já foi bem-sucedida.

Referências Bibliográficas
ARANTES, Otília; VAINER, Carlos; MARICATO, Ermínia. A cidade do pensamento único: desmanchando consensos. Petrópolis, RJ : Vozes, 2002.

BARROSO, Flávia Magalhães. O que falam as festas: éticas e estéticas das coabitações noturnas no centro do Rio de Janeiro. – 2022.

HARVEY, David. A produção capitalista do espaço. São Paulo: Annablume, 2005.

HARVEY, David. Cidades Rebeldes: do direito à cidade à revolução urbana. São Paulo: Martins, 2014.

HARVEY, David. Paris, capital of modernity / David Harvey. Nova York/Londres: Routledge, 2003.

MACHADO, Fernanda Amim Sampaio. Ei Você Aí, Me Dá Um Dinheiro Aí? – Conflitos, disputas e resistências na cidade do Rio de Janeiro. Lumen Juris; 2017.

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