21 de novembro de 2022 - 16h00
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Pensei em escrever a respeito da desastrosa estratégia de campanha do Ciro Gomes e das armadilhas que moram no ato de fazer as coisas com certo ressentimento. Desisti. Caminhei pelo lado oposto, então. Depois de ver o Gabigol mudar o comportamento de um estádio inteiro após um pênalti, pensei em escrever sobre a relação magnética que ele construiu com a torcida do Flamengo e os mistérios que cercam essa conexão mágica estabelecida. Deixei de lado.
Pensei em dois temas a respeito de literatura. Um sobre um livro que me causou profundo impacto, o Escute as Feras, da antropóloga francesa Nastassja Martin. Outro sobre a experiência de ler o primeiro livro no Kindle: o poderoso, doloroso e feminino Tudo é Rio, da Carla Madeira. Uma experiência que me fez traçar um longo caminho de tudo que li fisicamente na vida. A começar pelo personagem Tistu, do livro O Menino do Dedo Verde. Achei que o segundo tema tinha mais caldo para um artigo, mas o deixei em uma marinada para uma próxima vez.
Refleti se não deveria voltar aos temas mais próximos do mercado de comunicação. Percorri a possibilidade de redigir sobre a falta de memória na propaganda e as ocorrências cada vez mais curtas de ideias similares. A chegada de Elon Musk no Twitter também pareceu um assunto tentador. Afinal, ele tem deixado no ar que não está muito aí para as fake news e tem andado num discurso que soa perigoso, como quem passeia sobre um campo minado sem tomar conhecimento do risco. Se bem que o adjetivo “perigoso” parece uma palavra rasa para o que vem a reboque desse pensamento.
Outro tópico: a relação entre propagar fake news e mentir os números nos videocases da vida tende a render um bom tema, mas desisti porque agora tento pautar os textos para um lugar mais agregador. Olhei novamente para a experiência da primeira leitura no Kindle. Escreveria sobre o cheiro dos livros e a praticidade (que demorei a aceitar) na hora de colocar opções de leitura na mochila. Tirei o texto da marinada de quatro dias na geladeira, desenhei o primeiro parágrafo, até que tudo parou de súbito. O tempo cessou quando Gal Costa faleceu. E fui tomado por uma sensação de que não estou muito preparado para a partida de pessoas que criaram melodias que fazem parte da minha vida, de muitas vidas.
Desde o momento da notícia da partida de Gal, dedico espaços de tempo para contemplar vídeos dela nos palcos. Vejo também depoimentos emocionados de Gil, Caetano e Bethânia. Há uma cena da Gal cantando uma música no show do Djavan. Ela parece muito feliz na plateia. Recolhi esses fragmentos de vídeos, músicas, falas. Assisto a tudo, ora com lágrimas de tristeza — porque soou como uma injustiça do tempo —, ora com lágrimas de alegria — porque me lembro que esse tempo que parece injusto é o mesmo que o Caetano cantou como sendo inventivo e capaz de dar um brilho definido ao espírito. Gal, uma cantora que rompeu barreiras, que deu nome às dunas de Ipanema, que definiu sonoridades tão distintas na maneira de cantar, é um desses espíritos de um brilho definido. É a segunda vez em sequência que a música domina este recanto, mas não é à toa que o nome deste espaço é Qualquer Coisa. Diz sobre a liberdade de temas (para além do nosso mercado) e um universo plural onde habitam Gal, Gil, Bethânia, os Novos Baianos, Milton, Melodia, Djavan, Boldrin, Clara Nunes e tantas outras magias.
A finitude de alguém que a gente gosta nos faz relembrar da nossa própria finitude. Ecoa do mesmo modo ao pensar na finitude de pessoas que parecem ocupar um grupo desse alguém que se foi. São pensamentos que a gente finge que não existem, mas eles estão por lá, à espreita. No caso de Gal, há um intrínseco emaranhado que se conectou de todas as formas possíveis dentro de mim. E imagino que dentro de muitos outros. É indissociável pensar em Gal e pensar em Bethânia e pensar Gil que me faz pensar em Caetano que me faz pensar em djavanear. Assim como foi impossível assistir ao Milton na turnê A Última Sessão de Música e não sentir o peso e a beleza de admitir publicamente a palavra “última”. Porque pensar na despedida é refletir sobre todos os caminhos percorridos até aqui. No caso de Milton, a emoção brotou na primeira canção tão logo ele cantou “ponta de areia, ponto final”. Porque falar de um ponto final no primeiro verso da primeira música do último show é todo um ciclo de uma vida.
Quando Gal se foi, o Luiz Antônio Simas postou, com a sabedoria de sempre: “De onde tiraram essa ideia estapafúrdia de que ela morreu? Eu, por exemplo, estou escutando Gal cantar agora; como os netos dos netos dos nossos netos escutarão.” Conecto esse saber com outro saber que a Pixar trouxe da cultura mexicana na lindíssima animação Viva – A Vida é uma Festa: a ideia de que para uma pessoa continuar a existir no mundo dos mortos é preciso que a gente a cultive na nossa memória. Como disse Bethânia: a saudade vai ficar, eu quero que fique.
O último disco de vinil que comprei para a minha coleção foi o Fa-tal – Gal a todo vapor. Comprei porque queria manter viva em mim a memória de que a minha mãe falava muito do impacto de estar nesse show por diferentes noites. E, assim, minha mãe continua a existir. Comprei porque no encerramento do ano de uma das minhas filhas, uma das músicas escolhidas foi Dê um Rolê. E havia uma beleza ímpar em adolescentes cantando “não se assuste, pessoa, se eu lhe disser que a vida é boa” na versão de Gal. E se eles acreditam, se Gal acreditava, eu tendo a acreditar mais nessa ideia. No final, o último artigo do ano não é sobre perda. É sobre o começo do que vem pela frente quando alguém se vai. Que 2023 seja mais amor, da cabeça aos pés.