Assinar

Nossos ídolos já não são os mesmos. E está tudo bem

Buscar

Nossos ídolos já não são os mesmos. E está tudo bem

Buscar
Publicidade
Opinião

Nossos ídolos já não são os mesmos. E está tudo bem

Minha dor é perceber que, apesar de termos feito tudo o que fizemos, ainda sermos os mesmos e vivermos como os nossos pais. Veja bem, nossos ídolos já não são os mesmos, e as aparências enganam sim. Mas, felizmente, depois deles, já apareceu um monte de gente


8 de agosto de 2022 - 12h18

Crédito: Arte M&M/ Shutterstock

Outro dia eu estava arrumando a minha casa, ouvindo Elis Regina, quando começou Como nossos pais. Cantarolando atenta, me peguei reflexiva sobre os “nossos ídolos” – e se pouco ou muito mudou desde 1976, quando ela foi lançada.

“Ídolos”, os que deixam legado e criam impacto na sociedade, as nossas grandes referências. Nessa viagem mental, aterrissei minha reflexão na indústria da propaganda, do marketing, essa disciplina tão presente no dia a dia das pessoas, da qual todos aqui somos parte e responsáveis — responsabilidade essa muitas vezes minimizada.

E como em qualquer outra indústria, temos os nossos grandes nomes, com seus grandes feitos, que deixaram seu legado, influenciando até hoje a nossa forma de construir marcas. Mas para além de serem grandes referências, eles ainda ocupam lugares de grande poder e influência. E é aqui que quero começar nossa conversa: As transformações necessárias acontecem quando o tal do topo se percebe e atua como real aliado.

Sendo um pilar importante que compõe o imaginário e identidade da população, a propaganda sempre contribuiu para uma visão idealizada e não realista da nossa sociedade. Por muito tempo fomos erroneamente ensinados que propaganda precisava ser “aspiracional”, retratando o “imaginário de sucesso das pessoas”. E por uma não grande coincidência, essa versão sempre foi de um casal hetero, branco, magro, com dois filhos, morando num sobrado de um bairro nobre de uma grande metrópole, com um labrador e um café da manhã farto e com tempo de ser curtido.

A lógica é simples e óbvia, na sua complexidade: a indústria da propaganda sempre foi homogênea, liderada pelo mesmo perfil de pessoas, que contratam pessoas parecidas, que reproduzem a perspectiva de um grupo limitado que, por consequência, desenvolvem narrativas através de suas visões limitadas, acreditando que entendem a realidade de um País plural e diverso como o nosso.

É recente, mas muito lento e irregular, o movimento de transformação de lideranças e narrativas na indústria. Ainda nos escandalizamos em silêncio quando algum grande nome da publicidade clássica se manifesta publicamente sobre seu estilo de vida extraordinário e seus valores questionáveis. São demonstrações de que acesso ao mundo, personalidades, dinheiro, viagens e todo o tipo de influência não são garantias de entendimento e reflexão sobre seus compromissos perante a realidade. Podemos até conversar sobre como cada um tem sua jornada individual, porém grandes lideranças, com grande influência , têm grandes responsabilidades.

E não há mais espaço para deixarmos o privilégio tomar o seu tempo e, no seu próprio ritmo, decidir quando vai, efetivamente, se tornar um aliado.

Agora, quero contribuir para acelerar esse processo. Até porque eu também sempre fui beneficiada pela estrutura como ela é. Não faltam oportunidades para todos nos educarmos. Precisamos nos aliar a pessoas que possibilitam discussões importantes e ações necessárias.

Em julho, eu fui a um evento sobre empreendedorismo LGBTQIAP+, o Contai! Summit, que, aliás, contou com uma ausência enorme das lideranças brancas desse mercado, que tanto fazem filme bonito de diversidade e que amam um evento no Hotel Unique. O evento – com parceria da Avon, Magalu, Ambev, Meta e AlmapBBDO — me fez refletir tanto, que saí empolgada com o que foi falado e, ao mesmo tempo, incomodada com o pouco que ainda é feito. Mas nos manter em estado de incômodo é necessário, porque ele gera ação.

O Contai!, que é um projeto da Nhai!, liderado pela Raquel Virgínia, mostrou que abrir espaço para troca e diálogo fazem oportunidades surgirem, são espaços para receber ideias, inspirar, e mover projetos pontuais para ações de longo prazo e grande impacto.

Um lugar com conversas muito importantes, como o painel sobre descentralização dos investimentos para empreendedores LGBTQIAP+, onde Preto Zezé questionou onde realmente está o centro e a periferia, quando pensamos de onde surgem a música, a moda, a comida, a nossa cultura — certamente muito distantes, mas muito mais reais do que os clássicos comerciais eternizados pelos grandes nomes da propaganda brasileira.

São nesses lugares que devemos estar para ouvir. Nesses projetos que deveríamos investir o tanto de dinheiro malgasto que vemos por aí. Talvez isso seja uma das maiores inquietudes: ver o quanto gastamos em uma inserção de um filme de 30, e o que esse dinheiro poderia gerar de transformação real. Eu entendo que são dois formatos de investimentos diferentes, e por isso mesmo temos que questionar qual a decisão mais valiosa que a gente faz, com um dinheiro que não é nosso.

Ou será que só veremos um grande movimento de lideranças aliadas quando isso impactar no bônus? Se for assim, vai demorar. Uma pesquisa recente da PWC mostrou que no Brasil, 13% ou menos dos CEOs têm metas presentes em seu bônus anual ou plano de incentivos relacionados à representação de gênero e diversidade racial e ética.

A gente precisa se mexer, reconhecer e se aliar de verdade. Esse reconhecimento nos faz entrar em um processo de entender nossas próprias responsabilidades e assumir compromissos inerentes a elas. Não existe uma forma segura e a prova de erros para entrar nele. Mas o maior erro é contribuir para a manutenção do cenário que temos hoje. Minha dor é perceber que, apesar de termos feito tudo o que fizemos, ainda sermos os mesmos e vivermos como os nossos pais.

Veja bem, nossos ídolos já não são os mesmos, e as aparências enganam sim. Mas, felizmente, depois deles, já apareceu um monte de gente.

Que venham mais pessoas como Raquel Virgínia, Ian Black, Felipe Simi, Samantha Almeida, Helena Bertho, Joana Mendes, Mafoane Odara, Felipe Silva, Ary Nogueira, Matuzza Sankofa, Silvia Nascimento, Vivi Duarte, Cris Naumovs, Daniele Mattos, Angerson Vieira…

Publicidade

Compartilhe

Veja também

  • A consciência é sua

    A consciência é sua

    Como anda o pacto que as maiores agências do País firmaram para aumentar a contratação de profissionais negros e criar ambientes corporativos mais inclusivos?

  • Marcas: a tênue linha entre memória e esquecimento

    Tudo o que esquecemos advém do fato de estarmos operando no modo automático da existência