O fim do jornalismo (como o conhecemos)
O problema maior não é de qualidade. É de distribuição
O problema maior não é de qualidade. É de distribuição
Sem nenhuma conotação política, é possível afirmar com tranquilidade que Jair Bolsonaro é o maior influenciador digital do Brasil.
São 8 milhões de seguidores em sua fan page no Facebook. Mais de 5,2 milhões no Instagram. Um número incalculável de conversas no WhatsApp.
Mais que os dados impressionantes, contudo, chama a atenção a maneira pela qual o presidenciável conseguiu tantos fãs: de uma maneira direta, sem a intermediação dos veículos de comunicação jornalística.
Ele fala o que quer, do jeito que quer, de forma direta com as pessoas. Usando com maestria suas conexões sociais.
Bolsonaro teve 8 segundos no horário eleitoral gratuito do rádio e da TV. Conseguiu 49.275.358 de votos.
Ele não participou de nenhum debate depois que sofreu o atentado. Durante o mais importante deles, o da Rede Globo, fez uma live no Facebook.
Deu pouquíssimas entrevistas. Não escreveu nenhum artigo.
Esqueça as eleições por um momento: do ponto de vista da comunicação, esses fatos mudam simplesmente tudo o que nós, especialistas no assunto, acreditávamos até agora.
Acabei de reeditar um livro que publiquei originalmente em 2003, com a história dos pioneiros da Internet brasileira. Poucos se lembram: quando a rede surgiu no Brasil, em 1994, nós pagávamos por uma conexão (discada) e tínhamos acesso a todo o conteúdo possível. Aprendemos, com o tempo, a ler de tudo, de graça, na Web.
Le Monde? Estava lá, link direto. NYT? Tinha até um banner para acessá-lo. Assim como Folha, Globo, Estadão etc., sem exceção, estavam disponíveis a um clique de distância.
Ao longo dos anos, a Internet explodiu. E o que era um ambiente livre começou a ser regulado, oficial ou não-oficialmente, com o surgimento de discussões mercadológicas e a criação de barreiras. Primeiro com o debate sobre a Internet gratuita (lembra do iG?). Depois, com a crise dos veículos de comunicação. O conteúdo passou a ser cobrado. Surgiram os assinantes digitais, as degustações, os paywalls. E tudo o que estava ali, na nossa mão, gradativamente se tornou mais difícil de acessar.
Não importava o preço: depois de termos sido criados com conteúdo de graça na nossa primeira infância online, passamos a ter preguiça de comprar informação na Internet. Do mesmo jeito que havia acontecido com a música no início da crise das gravadoras (lembra do Napster?): uma canção podia custar R$ 1, mas nós preferíamos ter o trabalho de garimpá-la no Pirate Bay a preencher um formulário gigante, dando o número do nosso cartão de crédito para compra-la.
Com as redes sociais, a coisa piorou. Os veículos de comunicação passaram a gerar mais conteúdos para gerar clicks e atrair os usuários. Criaram conteúdos mais fofos, para competir com aquele post de gatinho. Conteúdos mais superficiais, clickbaits. Conteúdos mais sensacionalistas, “sob medida” para atender aos interesses e gostos das pessoas.
Nas redações mais sérias, jornalistas passaram a trabalhar com o analytics aberto o tempo todo. Nas nem tão sérias, passou a pipocar um tipo de conteúdo feito para ganhar cliques sem necessariamente se importar com os fatos. Detalhe: nesse último caso, o acesso permaneceu livre, sem os muros que separavam as pessoas dos veículos de maior credibilidade.
Veio o WhatsApp, onde o texto já vem no combo “fatos + opiniões”. Um pacote completo, de procedência direta dos seus amigos e da sua família. (E você já está cansado de saber que, na Internet, a recomendação de um conhecido e o velho boca-a-boca valem mais do que qualquer coisa.).
E chegamos ao aqui, agora.
Se existe uma certeza, escancarada pelas eleições, é esta: o jornalismo, como o conhecemos, foi simplesmente massacrado por um novo tipo de comunicação.
Escreveu a jornalista Maria Carolina Santos, no Medium, num texto essencial: “A relação de confiança hoje estabelecida por quase metade do eleitorado não é com o jornalismo sério, apurado, investigado, bem redigido. Se fosse, o resultado nas eleições seria outro”.
Complementou Marcos Caetano, neste M&M: “(…) a responsabilidade pela interpretação qualificada dos fatos de maior repercussão repousava sobre os ombros de umas poucas figuras. A história nos era contada por três ou quatro canais de televisão, umas poucas rádios de abrangência nacional, uma dúzia de jornais regionais relevantes e meia dúzia de jornais de maior abrangência (…). Hoje, a verdade não importa mais”.
Trump, Brexit, Bolsonaro. O jornalismo, do jeito que o conhecemos, chegou ao fim.
O problema maior não é de qualidade. É de distribuição.
Há uma enorme parcela da população (mundial, não só brasileira) que não assiste mais aos telejornais da TV aberta, não assina canais a cabo, não paga para ler conteúdo de jornais e revistas conceituados na Internet e não acompanha notícias por um portal online. Mas que, mesmo sem todas essas coisas, consome toneladas de informação todos os dias.
É preciso, urgentemente, criar uma forma de fazer o bom jornalismo (que existe e é mais necessário do que nunca) se conectar novamente com essas pessoas. Chegando, sim, aos canais onde elas consomem informação. Mas também de um jeito que permita que as pessoas consigam ir até ele, sem obstáculos. Numa via de mão dupla.
A indústria da comunicação (eu, você, todos nós) precisa chamar essa responsabilidade.
*Crédito da imagem no topo: NataliaDeriabina/iStock
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