O midiólogo Machado de Assis
Todo o atual reconhecimento digital de sua obra não surpreenderia o escritor, que também foi um homem atento às mudanças cruciais de sua época e antes mesmo de lidar com a mensagem, logo cedo aprendeu a dominar o meio
Todo o atual reconhecimento digital de sua obra não surpreenderia o escritor, que também foi um homem atento às mudanças cruciais de sua época e antes mesmo de lidar com a mensagem, logo cedo aprendeu a dominar o meio
Recentemente bombou, do TikTok para o mundo, o vídeo de uma leitora americana surpresa com a genialidade do romance “Memórias Póstumas de Brás Cubas” (1881), de Machado de Assis.
É muito bom ver que as novas gerações estão descobrindo Machado de Assis através de novos formatos de distribuição. Chega a ser curioso ver o legado do Machado ganhando os contornos da sociedade da informação, com memes como “Absolute Literature” ou a discussão sobre o suposto sotaque do autor carioca (será que ele falava “Memóriash Póshtumash”?).
Também vale destacar a biografia “Machado de Assis”, de Cláudio Soares, cujo primeiro volume será lançado em 2024. Pela primeira vez uma biografia sobre o escritor já nasce com uma rica dimensão digital. Sua produção, é bom frisar, tem sido muito bem documentada no perfil “Machado de Assis Online” no X (@mdassisonline) e em outras redes.
Todo o reconhecimento digital, penso eu, não surpreenderia Joaquim Maria Machado de Assis, pois ele também foi um homem atento às mudanças cruciais entre a segunda metade do século XIX e início do século XX. Mais ainda: Machado foi um midiólogo por vocação e ofício. Começou sua carreira como tipógrafo, diga-se de passagem. Ou seja, o jovem Machado, antes mesmo de lidar com a mensagem, logo cedo aprendeu a dominar o meio.
Além de acompanhar com genuíno interesse o surgimento de inovações como o bonde elétrico e o automóvel, Machado analisou profundamente a transição midiática de sua época, catalisada pelo telégrafo – em outras palavras, a “internet vitoriana”, conforme termo cunhado pelo jornalista inglês Tom Standage.
No excelente ensaio “O Jornal e o Livro“, por exemplo, o autor celebra a emergência da imprensa como “uma arca poderosa e mais capaz de conter o pensamento humano”. O texto foi dedicado, a propósito, a Manuel Antônio de Almeida, publisher da Tipografia Nacional e autor do singular romance “Memórias de um Sargento de Milícias”.
Machado, que dominava conceitualmente diferentes meios e linguagens, destacava a demanda de movimento pelo espírito humano, bem como a capacidade de novos meios para acompanhar tal dinâmica:
“A lei eterna, a faculdade radical do espírito humano é o movimento. (…) O livro é um sintoma de movimento? Decerto. Mas estará esse movimento no grau de movimento da imprensa jornal? Repugno a afirmá-lo. O Jornal, a literatura quotidiana, no dito de um publicista contemporâneo, é reprodução diária do espírito do povo (…). O livro não está decerto nestas condições. Há aí alguma coisa de limitado e de estreito se o colocarmos em face do jornal. Depois, o espírito humano tem necessidade de discussão, porque a discussão é movimento”.
Discussão é movimento! A partir dessa análise matadora, tenho certeza absoluta que Machado encararia com naturalidade a capilaridade do telefone celular. Assim como o jornal e o livro, o celular e suas aplicações ruidosas – como as redes sociais – também são sintomas da nossa necessidade de movimento e de discussão.
Por conta dessa visão apurada da relação entre o meio e a mensagem, Machado também escreveu sobre a emergência do telégrafo em diversos artigos para a sua coluna “A Semana”, publicada na Gazeta de Notícias. Ora crítico, ora entusiasta, o Bruxo do Cosme Velho enxergava que o Brasil agora estava conectado ao mundo através da rede de cabos submarinos e das agências de notícias, com suas informações “on-line”, praticamente em tempo real.
Machado igualmente entendia, com clareza e sagacidade, o impacto das mídias, sempre em movimento, à revelia até mesmo da qualidade da informação (aspecto que observamos hoje com os famigerados influencers). No conto “Fulano“, de 1884, Machado narra a história do Fulano Beltrão que se projetou socialmente apenas por perceber a oportunidade de aparecer na mídia, independente de ser “um casmurro que não ia às assembléias das companhias, não votava nas eleições políticas, não freqüentava teatros, nada, absolutamente nada”.
Porém, depois que um amigo publica “coisas belas e exatas” sobre ele no Jornal do Commercio, o até então pacato Fulano “impulsiona” a publicação em outras plataformas. A partir daí, começa a usar a imprensa – esta “grande invenção” – para tornar-se alguém relevante na sociedade, simplesmente por transformar fatos corriqueiros em factoides midiáticos.
Entre várias anedotas deste influencer do século XIX, um caso hilário com paralelos atualíssimos ganha destaque: uma vez viúvo, após o singelo enterro da esposa, Fulano expôs o mausoléu importado da Itália durante um mês, em plena Rua do Ouvidor, antes de levá-lo em definitivo para o cemitério. Justamente por compreender a mecânica dos jornais
de sua época, Fulano deixou de ser um sujeito ordinário, sem talentos significativos, para se tornar uma persona midiática, no melhor sentido Junguiano: o “Fulano Beltrão”.
Por essas e muitas outras, é claro que Machado não se surpreenderia com o amável TikTok da leitora americana. Machado entendia e acompanhava o movimento da raça humana e de sua tecnologia. Ele usava esse conhecimento não apenas em suas análises midiológicas, mas também em prol da própria carreira de romancista: com sua experiência de tipógrafo, acompanhava todas as etapas de produção de suas obras, pois quem domina o meio, domina a mensagem.
Assim como nós, o profissional e cidadão Machado de Assis foi fruto de um intenso período de transição midiática – do mecânico século XIX para o elétrico século XX. A capacidade de capturar o espírito do tempo e as nuances da alma humana foi tão certeira, que seu pensamento impacta – e continuará impactando – as novas fases da humanidade durante sua escalada no “Himalaia dos Séculos”.
Afinal, enquanto estivermos em movimento, em busca de discussão, a obra do Machado de Assis será relevante e universal. Pois carrega em si, como escreveu em Brás Cubas, a partícula eterna de sabedoria, independentemente da plataforma:
“Grande coisa é haver recebido do céu uma partícula da sabedoria, o dom de achar as relações das coisas, a faculdade de as comparar e o talento de concluir!”.
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