O que entretém você?
Uma pequena série sobre isolamento, tecnologia, entretenimento e arte
Uma pequena série sobre isolamento, tecnologia, entretenimento e arte
Nem todos que podem estão em casa. Uma pena. Mesmo assim, seguimos em grande número cada vez mais adaptados à quarentena, mesmo com esses movimentos questionáveis de abertura que vemos por aí.
Durante muitas semanas seguidas, temos visto nosso cotidiano ser invadido por más notícias. Uma morbidez que passou a fazer parte de todas as conversas. Uma sensação de tristeza, misturada com a incapacidade de agir, pois as coisas estão muito mais complicadas do que poderíamos imaginar que fossem ficar. Por motivos alheios à nossa vontade.
No médio prazo, isso causa estresse, mau humor e instabilidade: três dos cinco principais impactos psicológicos da quarentena na população brasileira, de acordo com estudo feito pelo jornal O Estado de São Paulo ainda em março.
Como evolução desse quadro, as pessoas começam a tentar se desconectar das notícias, e muitas se veem entediadas, em busca de maneiras de preencher esses espaços vazios. Várias dessas pessoas encontram uma solução para esse vazio, mesmo que imediata, no entretenimento.
O entretenimento é uma necessidade básica humana e, agora, mais importante do que nunca para nos mantermos sãos. O aumento da procura pelas plataformas mais imediatamente associadas ao entretenimento foi enorme nos últimos meses: 20% a mais de streaming, 15% de crescimento de perfis ativos na plataforma de games Twitch, 14% de aumento no consumo de conteúdo infantil.
O entretenimento ajuda a desconectar as pessoas dessa realidade tão complexa e ameaçadora que chega inevitavelmente até todos. Faz rir e chorar. Emociona e canaliza todas essas frustrações que passaram a fazer parte do dia a dia.
Não por acaso, a matéria da revista Exame destaca em sua manchete: “Games, sabonete e macarrão: os produtos em alta na quarentena”, colocando entretenimento como gênero de primeira necessidade. Pura verdade. Pura realidade. Pura contemporaneidade.
A partir dessa demanda gigante, as formas de entretenimento foram se adaptando e se diversificando.
Alguns formatos, e já sabemos bem um exemplo perfeito, se popularizaram tão rápido, que atingiram seu pico em semanas, e agora ninguém aguenta mais. Sim, estamos falando das lives. E, sim, acabou para as lives.
Acabou e está tudo documentado em memes, a forma mais imortal de registro histórico volátil da atualidade.
Sabemos que não é bem assim… Lives vão continuar existindo depois da pandemia, mesmo com sua reputação arranhada. Mas foi um bom aprendizado em vários sentidos.
Tecnicamente surgiram inúmeras possibilidades de transmissão. Artistas emergentes encontraram forma e linguagem para conseguirem algum destaque nesse cenário de eliminação completa da cultura nacional. Ficou evidente, e muito, a importância que faz o público na dinâmica do artista. Como a troca ao vivo faz a diferença. Como vai ser importante quando voltarmos a frequentar shows. Como vai ser emocionante.
Isso sem mencionar o teatro, que só existe ao vivo.
Ainda tentando recuperar parte desse calor da audiência, e usando de forma inédita uma plataforma que, como vimos, está sendo muito usada nestes tempos, Travis Scott fez uma performance ao vivo para quatorze milhões de pessoas dentro do game Fortnite. Abrindo novas fronteiras na relação do artista com seu público.
No que diz respeito à diversificação, vários exemplos surgiram. Contadores de histórias passaram a manter programação regular, com audiência garantida de crianças cheias de energia estimuladas por pais que precisavam de um tempo de silêncio dentro de casa.
Programas de humor se encontraram em novos canais com humoristas experientes, e velhos canais dando espaço para novas formas de fazer rir.
Mas algumas experiências são mais complicadas de serem absorvidas nesse cenário, e então, começa uma discussão que envolve forma (tecnologia) e conteúdo (mais profundo).
Bailarinos postando filmes curtos e fazendo lives com pequenas lições de aquecimento, passos de dança, alongamento. Jovens atores e atrizes interpretando textos curtos em linguagem nova. Museus entraram nessa onda, abrindo suas portas e seus acervos para uma contemplação mediada pela tecnologia. Alguns com mais, outros com menos sofisticação. Mas a medição dessas formas parece comprometer o essencial da relação com as pessoas.
Talvez seja porque nestes últimos exemplos identificamos uma fronteira sutil, na qual o entretenimento começa a não ser mais suficiente para preencher as lacunas mais profundas, que vão surgindo com o passar de mais semanas de isolamento social.
O entretenimento também se esgota, ainda que consiga estimular uma reflexão sobre o tempo atual, sobre a realidade. Mas acredito que há um momento em que essa carência, essa necessidade interna se intensifica e exige algo mais profundo, que conecte de maneira transformadora e desperte outras emoções, outros sentimentos.
E, na minha visão, é aí que ampliamos a conversa sobre a arte.
*Crédito da foto no topo: iStock
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