O raio molequetizador
Pare de tratar seus criativos como crianças ou você verá sua marca cair em um atoleiro de slime
Pare de tratar seus criativos como crianças ou você verá sua marca cair em um atoleiro de slime
“Os meninos da criação chegaram.”
“Quem pegou o job foram duas meninas da criação supertalentosas.”
“Os meninos da criação vão precisar sair no meio da apresentação porque eles estão cheios de ‘coisas’ na agência. A gente segue aqui.”
Se você nunca foi chamado de menino(a) da criação, você é um(a) privilegiado(a), sim.
É um privilégio ninguém insinuar que o seu trabalho é resultado da sua infantilidade ou que o seu talento e seu ofício nada mais são do que irresponsabilidades aplicadas a um problema.
Quem propaga a infantilização do criativo não o faz à toa, o faz para ser visto como o adulto da sala. Cria-se a imagem dos creative terribles, confinando, assim, a criação na caixa da imaturidade e alterando a razão de existir das agências, que deixam de ser vistas como grandes máquinas a serviço da criatividade e competitividade e se tornam barreiras de contenção contra possíveis acidentes da comunicação. Guardiãs de algo que ninguém sabe bem o que seria, invariavelmente caras e, cada vez mais, desnecessárias.
Durante o Cannes Lions de 2018, uma das principais mesas do festival trouxe esse assunto à tona enquanto seus integrantes debatiam qual o modelo de agência seria o mais bem-sucedido no futuro: independente, network, consultoria? Entre os convidados estava o Nick Law. Ele sentenciou que vencerá aquele que não infantilizar seus criativos e os trouxer para os cargos de liderança e de tomadas de decisão. O líder de uma grande consultoria desdenhou.
A infantilização dos criativos costuma ser desmascarada pelos CMOs mais inteligentes. Alguns dos melhores clientes do mundo não caem nesse truque e conseguem estabelecer uma relação de respeito e seriedade com os profissionais da criação. Esses mesmos clientes entendem que a criatividade não se limita à criação e deixam claro a expectativa de trabalharem com uma agência inteira focada em criar.
O documentário Santiago, de 2007, dirigido por João Moreira Salles, que tem como personagem central o mordomo da família
Salles, tem uma passagem curiosa. Nela, o diretor conta sobre o dia em que acordou no meio da noite ouvindo alguém tocar o piano da família. João se levantou, andou pela casa escura, desceu as escadas e chegou à grande sala onde ficava o instrumento. Não havia ninguém lá, exceto Santiago, que tocava o piano vestindo um smoking. João perguntou a Santiago a razão de ele estar vestido daquele jeito, afinal, era madrugada e ele estava sozinho. Santiago respondeu: “Porque é Beethoven”. Na sequência, o próprio João concluiu que, naquela noite, Santiago lhe dera uma preciosa lição sobre certo senso de responsabilidade.
É uma responsabilidade enorme ser o criativo de uma conta. Agências e clientes deveriam nutrir essa convicção diariamente como questão de sobrevivência para ambos. Criatividade continua sendo a maneira mais poderosa, quase desleal, se não fosse acessível a todos, de uma marca garantir sua relevância. Rotular criatividade como molecagem é rasgar dinheiro. Dinheiro de verdade, não aquele do Banco Imobiliário.
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