Os demônios dançam no papel

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Opinião

Os demônios dançam no papel

Eu converso com os meus textos enquanto os redijo, assim como com as muitas abas abertas da minha cabeça, e a escritora Rosa Montero em seu O perigo de estar lúcida abriu mais algumas


22 de julho de 2024 - 6h00

Quando eu escrevo um artigo, a maior dificuldade sempre reside no primeiro parágrafo. Se ele não está inteiro, nada mais acontece. Se ele não está fluindo, os seguintes não funcionam. Se ficou vago, todo o resto segue o mesmo destino.

Há quem consiga pensar no final do texto primeiro. Há quem consiga escrever tudo numa toada só e depois vai lapidando. Não consigo. Eu fico preso no primeiro parágrafo por dias, semanas até. Agora mesmo, em uma janelinha ao lado, ele está me olhando de esgueira. É chegado numa galhofa. Ele sabe que não está pronto. Eu também sei. Só que, de nós dois, apenas ele se diverte com isso.

Eu converso com os meus textos enquanto os redijo. Eu converso com as abas abertas da minha cabeça, e elas são muitas. Eu tenho respostas precisas para coisas já passadas e cenários desenhados para catástrofes futuras. Eu sempre achei isso de uma estranheza difícil de abordar. Então, num dia de sol qualquer, a minha esposa disse: eu acho que você vai adorar esse livro. Bastou o primeiro capítulo de O perigo de estar lúcida para essas minhas estranhezas se diluírem entre tantas outras ali escritas. Foi como quando você corta o dedo e o sangue aparece todo orgulhoso. Logo em seguida, esse mesmo sangue se vê diluído na água que sai da torneira. Ele é um nada ali. O livro me veio como essa água gelada que arde ao primeiro contato, mas traz uma sensação boa à medida que vamos nos acostumando.

No livro, a autora mostra algumas ligações entre criatividade e instabilidade mental. Com exemplos para lá de intrigantes e alguns dados assustadores, como a da alta taxa de suicídio entre escritores, Rosa Montero nos faz passear pela solidão, pelos métodos, pela intensidade com a qual alguns artistas buscam algo para além da vida cotidiana.

Faz-se necessário um porém. A autora fala sobre escritores, romancistas e artistas. Não me vejo como nenhum deles. E nunca vi publicidade como arte. Fico com a parte do indivíduo criativo seja da qualidade que for que a autora menciona.

Desde o início da pandemia, quando teóricos estavam apressados em criar as suas projeções, guardo uma aversão à expressão “novo normal”. Acho vazia, rasa, boba inclusive. Já escrevi sobre isso em um artigo recente, mas no livro chega-se a um lugar que vale destaque: “Na verdade, o que é realmente estranho é ser normal. Uma pesquisa do Departamento de Psicologia da Universidade de Yale, nos Estados Unidos, publicada em 2018, afirma algo que basta pensarmos um pouco para tornar-se óbvio: a normalidade não existe. Porque o conceito de normal é uma construção estatística derivada do mais frequente.”

Quando eu estava na alfabetização, ainda peguei um resquício de uma era que não se podia escrever com a mão esquerda. Veja bem, estou falando do começo dos anos 1980 sobre algo que era praticado na Idade Média: forçar uma pessoa canhota a escrever com a mão direita, porque a mão esquerda seria impura. A crendice popular diz, inclusive, que o diabo seria canhoto. Desde aquele evento, eu dividi a mão esquerda para habilidades finas e a direita para tudo que exige força. Normalzinho ele, como dizem com ironia.

“Estar lúcida pode ser perigoso porque nos confronta com verdades incômodas e profundas sobre nós mesmos e o mundo ao nosso redor.” Este trecho me levou direto para a mulher do médico, em Ensaio sobre a Cegueira, de Saramago. Aquela que carrega o fardo de ser a única capaz de enxergar tudo de horrendo que ocorre ao redor. Ela é a lucidez no caos, a que não pode se dar ao luxo de descansar. Mesmo quando tudo é horror, cabe a ela ser a fronteira da dignidade dos seus. Conectando Rosa com a mulher do médico, percebo o luxo de poder ser louco de vez em quando. Ou, como ela diz: “A realidade do mundo é uma invenção, uma miragem tremeluzente, é algo tão incerto que estou convencida de que mesmo as pessoas menos imaginativas intuem que além das paredes das suas casas se esconde um abismo.”

Um dos motivos de esse livro ter caído na minha mão é a enorme facilidade com a qual eu me dissocio do lugar onde estou. Do nada, uma dessas abas abertas da cabeça torna-se interessante, o som da sala some aos poucos, eu esqueço onde estou e volto quando uma voz me chama. Em geral, com a frase “Aonde você foi?”.

Rosa Montero passeia pela dissociação que cria esse descompasso entre o que acontece de real e o que acontece criativamente na cabeça. Essa transcendência, além de uma característica, é uma forma de encarar o mundo sem sofrer com tudo o que podemos sugerir que é real nele. É uma tentativa de calar o consciente para tentar acionar por uma fração de segundo o inconsciente.

Há muito tempo um livro não me fazia pensar em tantas coisas. Eu virei o vendedor da Amway que vai batendo de porta em porta, perguntando “já leu?”. Extremamente bem-escrito, com fatos fascinantes e ainda guarda uma história bizarra que aconteceu (ou não) com a autora. Para fechar, fico com uma expressão com a qual eu nunca havia me deparado: o momento oceânico. Criada pelo escritor francês Romain Rolland, ela serve para todo momento em que uma paisagem, uma música ou uma imagem tira você do eixo, fazendo parecer que “nada separa a sua consciência do restante do todo”. Você é “a gota d’água que se une ao oceano”. Não sei se você já experimentou isso. É um momento breve, fugaz. Já aconteceu comigo em um simples olhar para as minhas filhas, acontece quando eu e minha esposa caminhamos pela praia de Camburi. Mas certa vez, dentro do mar, com o sol caindo, quase sozinho, foi quando eu me dissociei por completo. Rosa Montero me jogou direto para esse dia, e só agora entendi que naquele momento oceânico, o que eu senti era uma certeza de que há sentido no caos, nas estranhezas, nas peculiaridades de cada um de nós.

“Escrever é abrir as portas da mente e deixar os demônios dançarem no papel.” – Rosa Montero.

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