Os virtuosos do assento do meio
Eu não me iludo. Sei que a construção de uma boa imagem para os ocupantes dos assentos do meio não será uma tarefa fácil
Eu não me iludo. Sei que a construção de uma boa imagem para os ocupantes dos assentos do meio não será uma tarefa fácil
Escrevo este texto enquanto voo de Orlando para Las Vegas, onde vou participar da SuperZoo, a maior feira do mercado de pets do planeta. Como contei aqui, há cerca de dois anos decidi mudar de país e me tornar empreendedor. Como sócio da Woof Gang Bakery — que hoje é a oitava maior rede de pet shops dos Estados Unidos, com mais de cem lojas espalhadas por 12 estados —, estou atravessando um extraordinário período de descobertas pessoais e profissionais. Descobertas que só aqueles capazes de sair completamente da zona de conforto são capazes de experimentar. Como se não bastasse de novidades, em meio a tudo isso, tornei-me pai mais uma vez. Arthur é um lindo americaninho-brasileirinho, de apenas nove meses, que veio abençoar e coroar esse período de completo renascimento. Tantas mudanças, em tão pouco tempo e após os 50 anos de idade, quando muitos já começam a fazer planos de desaceleração, acabaram me dando uma nova perspectiva sobre a vida e sobre a importância da renovação permanente como antídoto para a acomodação.
Essa nova perspectiva me fez refletir sobre antigos hábitos. Hábitos tão arraigados e aparentemente singelos como o tipo de assento preferido num voo de avião. Eu passei a vida defendendo que há basicamente dois tipos de pessoas: as que voam de janela e as que voam de corredor. E eu sempre fui um passageiro que preferiu a janela. Mais do que isso: eu atuava como um militante da causa, daqueles que consideravam quase como um defeito de caráter o hábito de voar de corredor. Na minha visão simplista, as pessoas que voam de janela eram mais sonhadoras, imaginativas, criativas, que sentiam prazer em olhar para o céu, admirar paisagens e que possuíam um senso de perspectiva sobre o mundo. Por outro lado, os que voam de corredor eram, para mim, pessoas definitivamente estressadas, excessivamente práticas, sem tempo para sonhar, que estavam sempre com pressa para desembarcar e que não sabiam apreciar a viagem, mas apenas o destino final. Depois de tantas transformações pessoais e de tanto refletir sobre elas, eu possuo hoje outra visão sobre a questão dos assentos. Não, eu não passei a preferir o corredor. Continuo achando aquele pessoal bastante impaciente e pé no chão demais para o meu gosto. Nada de corredor, jamais. A minha grande descoberta foi, pasmem, a delícia de voar no assento do meio.
É obvio que, se pensarmos num voo longo, de oito ou nove horas de duração, faz todo sentido termos um assento na janela (para recostar a cabeça na hora de dormir, além das vantagens que mencionei acima) ou mesmo no corredor (para os seres objetivos que não querem atrapalhar ninguém na hora de ir ao banheiro e nem se importam de levar trombadas no joelho dos carrinhos do serviço de bordo). Um voo longo no assento do meio, imprensado por duas pessoas esparramadas para dormir, pode ser uma verdadeira forma de tortura. No entanto, se pensamos num voo mais curto, daqueles em que quase ninguém dorme, viajar no famigerado assento do meio traz uma vantagem incrível: dobramos as chances de conhecer pessoas interessantes e ouvir suas histórias — algumas que, talvez, serão capazes de transformar nossas vidas para sempre.
Quero destacar a importância do esforço sincero de aproximação com nossos semelhantes, no mundo real, olhando nos olhos, e da descoberta de novas realidades individuais, sem que para isso precisemos desmerecer ou condenar a vida digital, tão importante e tão irreversível como fonte de progresso
Vivemos tempos paradoxais, em que a ultraconectividade se combina com o ultraisolamento. Temos cinco mil amigos no Facebook, 200 grupos de WhatsApp e todos os nossos contatos ao alcance das mãos, mas jamais conversamos tão pouco. Não vou discorrer longamente sobre esse que é o grande dilema do mundo atual, uma vez que milhares e milhares de artigos e teses já foram publicados sobre ele. Na verdade, as próprias redes sociais acessadas por celulares são as grandes divulgadoras das críticas às pessoas que não saem dos seus celulares. Da mesma forma que não faltam memes nas redes sociais sobre familiares que não se falam durante as refeições, pois estão todos nas redes sociais — ou ainda vídeos alarmistas sobre o perigo de se passar o dia assistindo a vídeos alarmistas. Ironias da vida moderna, mas não é delas que quero falar. Quero apenas destacar a importância do esforço sincero de aproximação com nossos semelhantes, no mundo real, olhando nos olhos, e da descoberta de novas realidades individuais, sem que para isso precisemos desmerecer ou condenar a vida digital, tão importante e tão irreversível como fonte de progresso. Na coluna de hoje, eu quero mesmo é falar da agradável experiência de voar no assento do meio, algo que talvez possa fazer uma pequena diferença para a reconquista do que mais faz falta ao mundo nos últimos tempos: o diálogo.
Eu não me iludo. Sei que a construção de uma boa imagem para os ocupantes dos assentos do meio não será uma tarefa fácil. Somos olhados com desdém tanto pelos sonhadores da janela quanto pelos pragmáticos do corredor. Muitos nos imaginam como pessoas que deixam tudo para a última hora, a ponto de ficar sem uma opção decente de assento, ou até mesmo uns duros, sem dinheiro para um upgrade ou para um check-in prévio. Acham-nos uns acomodados, dispostos a aceitar o que a vida (ou a companhia aérea) nos oferece, sem qualquer questionamento, sem qualquer tentativa de interferir no próprio destino. Estou consciente de todos os preconceitos que são dirigidos a nós, os incompreendidos ocupantes dos assentos centrais. Mas eu sonho com o dia em que mudaremos essas percepções errôneas. Quero que sejamos ativistas da causa, que lutemos para mostrar ao mundo como são incríveis as pessoas que aceitam viajar apertadas em troca de uma experiência mais rica e surpreendente.
Um dia, o mundo nos entenderá e teremos orgulho de ser essa terceira via. Afinal de contas, para quem o sonhador da janela pede ajuda para intermediar o possível conflito geopolítico com pragmático do corredor, toda vez que precisa cruzar a fronteira para uma saída, não rumo ao oceano, mas em direção ao banheiro? Nesses tempos em que todos parecem ter se transformados em ativistas radicais, de direita ou esquerda, de janela ou de corredor, precisamos, mais do que nunca, de pessoas capazes de funcionar como uma ponte humana entre ideias que pareciam para sempre divorciadas. Essas pessoas se sentam nos assentos do meio. Preste mais atenção na gente. E, se sentir coragem, torne-se um de nós. Porque o conforto — bem como a zona de conforto — é para os fracos de caráter.
*Crédito da imagem no topo: farakos/iStock
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