Assinar

Os zumbicórnios e a publicidade

Buscar
Publicidade
Opinião

Os zumbicórnios e a publicidade

"Sem um rígido controle de custos que implica frequentemente em zerar o gasto com publicidade, renegociar empréstimos, frear planos de expansão geográfica e reduzir o quadro de pessoal a machadadas, poucas destas criaturas sobreviverão até a crise passar (sim, porque esta, como todas as outras, também acaba um dia)"


13 de junho de 2022 - 16h00

Shutterstock/Arte MM

O roteiro é conhecido: taxas de juro baixas e ativos tradicionais (imóveis, ações) valorizados acima da média histórica aumentam a tolerância dos investidores ao risco. No momento seguinte aparecem as narrativas “disruptivas”, “first movers” e “exponenciais”, baseadas no uso da tecnologia para criar novos produtos e serviços ou aperfeiçoar os já existentes. Inundadas com capital, startups com fluxo de caixa negativo investem agressivamente em marketing e contratações. Quando os juros e aversão ao risco aumentam, a receita operacional é insuficiente para cobrir sequer a amortização da dívida, e os “unicórnios” de ontem se transformam nos “zumbis” de hoje. Sem um rígido controle de custos que implica frequentemente em zerar o gasto com publicidade, renegociar empréstimos, frear planos de expansão geográfica e reduzir o quadro de pessoal a machadadas, poucas destas criaturas irão sobreviver até a crise passar (sim, porque esta, como todas as outras, também acaba um dia).

O quadro é particularmente desafiador para o setor de comunicação, já que os elementos descritos acima, presentes nas crises financeiras de 2000-2001 e 2008-2009, desta vez se combinam com “o mundo real” através de uma elevada taxa de inflação global, desorganização logística (Covid + guerra Ucrânia) e mudanças geopolíticas que afetam as cadeias energéticas, com impacto direto sobre os grandes anunciantes de bens de consumo. Diante da possível retração dos consumidores, a primeira medida defensiva deste setor, constituído por empresas tradicionais já consolidadas, é o corte de custos da verba de publicidade. Sim, eu sei que deveriam fazer exatamente o oposto, pois anunciar na crise é uma oportunidade, blá-blá-blá, mas entre reduzir empregos ou diminuir o retorno para os acionistas, os Diretores Financeiros acham mais fácil cortar o investimento em marketing por alguns trimestres.

Esta redução não é uma questão existencial para os grandes grupos de tecnologia que também atuam no setor de publicidade (ao contrário do avanço da legislação de privacidade de dados, essa sim um “game changer” para as “AdTechs”), mas pode ameaçar seriamente a continuidade de algumas empresas tradicionais de comunicação (tanto de conteúdo – veículos – quanto de prestação de serviços – agências). Ao final da crise, as Big Techs devem avançar ainda mais seu domínio no segmento.

Diante deste quadro, quais as opções para quem deseja permanecer de pé até a próxima estação de reprodução dos Unicórnios ou a retomada de alguma normalidade macroeconômica?

Em primeiro lugar, é preciso reconhecer que nosso ponto de chegada não será um “novo normal”. A pandemia e a guerra mostraram que depender de cadeias produtivas complexas era um risco que não estava adequadamente avaliado por muitos gestores (pergunte para qualquer fabricante de automóveis). Isso não significa reverter todo o fluxo de manufatura construído ao longo das últimas duas ou três décadas (particularmente no caso de bens duráveis) mas criar algumas redundâncias que certamente vão exigir tempo, recursos e foco da alta direção da empresa (como a Apple está fazendo no Vietnã (encurtador.com.br/sHO05), em detrimento das rotinas envolvidas ao redor dos processos de comunicação. A consequência é que ainda é impossível de prever o quanto isso vai acirrar tensões locais capazes de gerarem guerras comerciais e tarifárias com impacto direto sobre os preços, o que também afeta a percepção dos consumidores sobre as marcas.

Nosso setor não tem muito controle sobre estas mudanças de bases de produção, mas tem sim envolvimento direto com outros três fatores importantes que também estão mudando rapidamente sob nossos pés: a crise ecológica, as mudanças demográficas e as novas estruturas de distribuição de confiança dentro da sociedade.

O descontrole nos preços de energia baseada no carbono vai, em um primeiro momento, dificultar processos de transição energética para fontes mais “limpas”, já que muitos países que utilizavam petróleo ou gás russo terão que procurar alternativas imediatas e mais baratas –o que sabemos que não é o caso de fontes alternativas, que possuem um custo de implantação mais alto. Como destaca a McKinsey (encurtador.com.br/cwzNU) a prioridade é manter as empresas funcionando, e o aumento do preço das fontes atuais de energia será coberto provavelmente com uma redução dos investimentos nas suas alternativas. Até que ponto isso será cobrado ou entendido pelos consumidores ainda não é claro — mas certamente é uma janela de oportunidade para empresas que desejarem reafirmar e demonstrar concretamente seu compromisso com o meio-ambiente. Com certeza essa postura vai render frutos no médio prazo, quando veremos uma retomada, talvez até com maior vigor, da transição para a energia limpa e processos produtivos que agridam menos o ecossistema.

A questão das mudanças demográficas já está no radar de praticamente todas as marcas relevantes no setor de bens de consumo (se elas sabem conduzir adequadamente sua comunicação sobre o tema é outra discussão), mas acredito que sua velocidade talvez seja ainda maior do que estamos prevendo. Não podemos esquecer que os baby-boomers da classe média brasileira incorporaram um pouco da rebeldia hippie (romantizada, mas ainda assim um traço comportamental importante) com a resiliência decorrente do enfrentamento da ditadura e pelo menos três décadas de crises econômicas constantes. Achar que eles irão passivamente aceitar uma comunicação baseada na ideia de aproveitar a “melhor idade” em resorts de luxo ou casas de campo é um erro que pode custar bem caro para sua marca (e sim, aqui estou advogando em causa própria, rs).

Last but not least, a pandemia acelerou um processo que já era latente desde os movimentos de protesto de 2013 e se concretizou de forma indiscutível na eleição presidencial de 2018: os meios de comunicação de massa controlados por grandes corporações ou grupos político-econômicos não são mais capazes de regular o fluxo da distribuição da confiança dos indivíduos nas instituições e nas marcas — e como o querido Jaime Troiano nunca cansa de repetir, “a marca é também uma promessa”. Se não confiamos nessa promessa, o custo para convencer as pessoas vai ficando cada vez mais alto. As estruturas massivas de comunicação são cada vez menos efetivas na construção desse sentimento, diante de consumidores conectados de forma direta, sem a intermediação dos veículos tradicionais, levando ao aparecimento de novas fontes de confiança (os influenciadores) que não obedecem aos processos consagrados de construção de marca e diálogos com consumidores. Nada indica que a redução de custos e aumento da eficiência destas tecnologias vai diminuir, o que fará com que sejam ainda mais utilizadas no dia a dia dos indivíduos.

Sei que o cenário é complexo e talvez você esteja lamentando a chance perdida de ter participado ou investido em um “Unicórnio”. Vai demorar algum tempo para esta oportunidade aparecer novamente. O que significa que uma comunicação bem-feita, sintonizada com o momento das empresas e os valores das marcas e dos consumidores vai voltar a ter destaque. Entre o apocalipse Zumbi e o Metaverso, talvez essa seja uma boa pausa para reflexão.

Publicidade

Compartilhe

Veja também

  • A consciência é sua

    A consciência é sua

    Como anda o pacto que as maiores agências do País firmaram para aumentar a contratação de profissionais negros e criar ambientes corporativos mais inclusivos?

  • Marcas: a tênue linha entre memória e esquecimento

    Tudo o que esquecemos advém do fato de estarmos operando no modo automático da existência