Pequena história sobre um homem gigantesco
O vazio da ausência de Júlio Ribeiro é imenso, que jamais poderá ser suprido por uma pessoa – mas que pode ser compensado se cada um de nós conseguir ser ao menos um por cento mais parecido com ele
O vazio da ausência de Júlio Ribeiro é imenso, que jamais poderá ser suprido por uma pessoa – mas que pode ser compensado se cada um de nós conseguir ser ao menos um por cento mais parecido com ele
14 de fevereiro de 2018 - 14h04
Há uma espécie de regra de ouro na literatura que diz mais ou menos assim: “Seja universal, cante sua aldeia.” Parece contraditório, mas os escritores de maior sucesso por meio dos tempos foram aqueles capazes de contar histórias poderosas, ainda que passadas em seus pequenos pedaços de mundo. Assim foi, no passado distante, com Miguel de Cervantes e a sua Espanha interiorana de Dom Quixote, com Shakespeare e sua Inglaterra medieval, e é nos tempos modernos, com Philip Roth escrevendo a partir dos bairros judeus de sua Newark e com J.M. Coetzee cantando a desolação de sua África do Sul, entre tantos exemplos. Tudo isso me veio à mente quando decidi escrever sobre Júlio Ribeiro, o maior publicitário que tive o prazer de conhecer, e que neste mês nos deixou órfãos de seu talento e sua grandeza. Muita gente brilhante já escreveu sobre a carreira do mestre, seus ensinamentos e suas formidáveis conquistas profissionais, de forma que eu não acrescentaria muita coisa se tentasse, ainda que com outras palavras. Em vez disso, preferirei cantar a minha aldeia, ou seja, contar uma passagem pessoal sem maior relevância na carreira do JR, mas que certamente permitirá que todos entendam mais uma vez a estrutura moral desse homem gigantesco. Porque quem é gigante consegue ser gigante até nos pequenos gestos.
Corria o ano de 2004 e eu acabara de assumir a principal posição de marketing e comunicação, com assento no comitê executivo, de uma grande empresa do País. Meu desafio, naquele momento, não era pequeno. Eu tinha o mandato para fazer uma completa revolução na linha de comunicação da empresa, do logo às cores institucionais, das campanhas externas à comunicação interna. Era fundamental ter algo que gerasse impacto não apenas para o lado de fora, ou seja, junto ao público consumidor, mas também — e principalmente — para o lado de dentro, mexendo com o engajamento de colaboradores e com a cultura corporativa. Nesse processo, ficou claro que deveríamos buscar as melhores ideias onde quer que elas estivesses, o que implicava promover uma concorrência.
O vazio da ausência de Júlio Ribeiro é imenso, quase do tamanho de toda a indústria. Um vazio que jamais poderá ser suprido por uma pessoa – mas que pode ser compensado se cada um de nós conseguir ser ao menos um por cento mais parecido com ele
Decidimos convidar as três agências que já atendiam a instituição, deixando claro que, dado o processo de integração que o novo CEO buscava promover, desejávamos ter uma agência única para atender toda a conta. Eu falei pessoalmente com os líderes das três agências. Com diferentes reações, a que estava há décadas na conta e a que estava conosco há menos tempo aceitaram participar da concorrência. Curiosamente, a mais antiga encarou o desafio com grande energia e motivação, enquanto a mais nova mostrou-se mais incomodada. Mas faltava a terceira, e ela tinha de ser a Talent, de Júlio Ribeiro. Esse movimento, no entanto, tinha algumas complicações. Isso porque, embora fôssemos atendidos pelo Grupo Talent, a agência que tinha um pedaço da nossa conta não era a agência mãe, mas a QG. Dado o tamanho da nossa empresa, com orçamento total na casa das centenas de milhões, buscávamos uma agência completa e de grande porte. E, de preferência, que viesse com um JR de fábrica. O problema é que a Talent já atendia segmentos de um concorrente nosso.
Naquele momento, esse empecilho não me pareceu intransponível, já que a nossa conta consolidada teria um orçamento três ou quatro vezes maior do que o pedaço atendido pela Talent no concorrente. “Nenhum publicitário vai ser maluco de abrir mão de uma conta como a nossa”, pensei. E marquei um almoço com o Zé Eustáquio, braço direito do JR na Talent e um amigo de longa data. O Zé — que aprendeu com o mestre e é também um ícone do mercado publicitário — apareceu para o almoço com seus três traços indefectíveis: pontualidade, cavalheirismo e meias brancas. Eu expliquei para ele o processo da concorrência e o quanto queríamos a Talent no mesmo. Ele sabia do prestígio que a agência tinha junto a vários membros do comitê executivo e, convenhamos, uma campanha de reposicionamento com grande consistência e longevidade era o prato forte da Talent, de forma que ele entendeu logo de cara que as chances de ganhar aquela que poderia ser a maior conta da agência iam além de uma mera possibilidade. Eu mesmo acreditava que dificilmente eles perderiam a concorrência, até pelo conhecimento de muitos anos no mercado em questão. O Zé ficou animado, mas percebi que algo o preocupava. “Marcos, fico honrado com o convite, mas preciso conversar com o Júlio. Te dou um retorno ainda esta semana”, ele disse.
Julio e eu
No dia seguinte, o Zé apareceu cedo na minha sala. Ele não é homem de discutir assuntos importantes por telefone, péssimo hábito de muitos publicitários famosos. Indo direto ao ponto, explicou que conversou longamente com o JR e, lamentavelmente, teria de abrir mão do convite, ainda que isso fosse custar a conta à QG. Confesso que jamais esperava ouvir essa resposta. Diante do meu espanto, ele continuou: “Nós atendemos ao seu concorrente há muitos anos e até acho que em algum momento poderemos perder essa conta. Para nós, financeiramente seria espetacular atender vocês. O orçamento de vocês seria absurdamente maior do que o que temos hoje no concorrente, mas o Júlio é absolutamente contra participarmos de uma concorrência sem que o atual cliente seja comunicado, nos dê autorização e esteja disposto a nos liberar caso vençamos a disputa. Como sabemos que eles não darão tal consentimento, nem faz sentido continuar a conversa”. Vale contar que eu havia sido abordado por várias agências que já trabalhavam com clientes do nosso segmento. Todas elas não apenas admitiam, como adorariam participar da concorrência, desde que de forma sigilosa. Todas, menos a Talent de Júlio Ribeiro. Eles continuaram a cuidar daquele cliente de orçamento menor até o dia em que foram dispensados — mas sem que o referido cliente pudesse dizer uma vírgula a respeito da conduta da agência. Eu entendi perfeitamente o ponto, parabenizei o Zé e o JR pela postura e arrematei: “Isso só me deu mais vontade de um dia ter vocês me atendendo.” Acabamos convidando uma terceira agência, que não tinha conta conflitante. Com um trabalho brilhante, ela venceu a concorrência e a marca da empresa foi valorizada mais de 600% em cinco anos, segundo o Interbrand.
Final feliz para todos. E ainda mais feliz para o mercado publicitário brasileiro, que durante tantas décadas teve o privilégio de contar com um líder ético, combativo, atuante e inspirador como o Júlio Ribeiro. O vazio de sua ausência é imenso, quase do tamanho de toda a indústria. Um vazio que jamais poderá ser suprido por uma pessoa — mas que pode ser compensado se cada um de nós conseguir ser ao menos um por cento mais parecido com ele. A única coisa que não perece no mundo são as grandes histórias e os bons exemplos. Se conseguirmos entender a dimensão do Júlio e fazer por merecer a honra de se dizer colega de mercado e contemporâneo de um sujeito como ele, talvez essa perda devastadora possa ser um pouco menos dolorosa.
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