Pressão pedagógica
Se não há organização, mobilização e, até mesmo, alguma dose de enfrentamento, os modelos vigentes não mudam e a indústria mantém o passo lento nas questões de equidade, diversidade e inclusão
Se não há organização, mobilização e, até mesmo, alguma dose de enfrentamento, os modelos vigentes não mudam e a indústria mantém o passo lento nas questões de equidade, diversidade e inclusão
Sem pressão, não há solução. A máxima usada por grupos ativistas de defesa dos direitos das pessoas em diversas
situações de desamparo ou desigualdade vive dando exemplos de que é real. Sem organização, mobilização e, até mesmo, alguma dose de enfrentamento, os modelos e práticas vigentes não mudam. Na semana passada, a regra foi comprovada pelo Cannes Lions, o principal festival criativo da indústria global de comunicação e marketing. Das 26 cadeiras destinadas ao Brasil pelo evento em seus júris de 2023, oito serão ocupadas por profissionais negros. Ou
seja, 30%. Embora ainda minoria e, portanto, longe de espelhar a realidade da população brasileira, onde pardos e pretos são maioria, trata-se de um recorde histórico.
O aumento da representatividade negra no Cannes Lions é um reflexo da pressão pública feita junto à organização do evento no ano passado, quando havia apenas um negro entre os brasileiros presentes nos júris. Após o anúncio oficial, os coletivos Papel & Caneta e Publicitários Negros, o Clube de Criação e o hub Auê Creators assinaram uma carta aberta dirigida ao CEO do evento, Simon Cook. No texto, os signatários alertaram para a necessidade de se agir com pressa para que as mudanças urgentes fossem feitas. Após ser marcado em mais de mil tuítes, Cook respondeu admitindo o erro e se comprometendo a iniciar uma jornada para reparar a falta de diversidade nos júris — segundo a organização, a presença de negros no total de jurados subiu de 8%, em 2021, para 13%, em 2022.
Dias depois, o festival incluiu seis profissionais negros brasileiros nos júris de shortlists — que fazem uma pré-avaliação remota dos trabalhos inscritos. Cinco deles estão entre os escolhidos para os júris principais deste ano: Dilma Campos (Nossa Praia), Felipe Silva (Gana), Gabriela Rodrigues (Soko), Joana Mendes (Clube de Criação) e Heloisa Santana (Ampro). O grupo de oito negros de 2023 se completa com Konrad Dantas (KondZilla), Kelly Castilho (Confeitaria Filmes) e Samantha Almeida (Globo), a única representante do País entre os presidentes de júris, responsável pela condução dos trabalhos de avaliação da área de Social & Influencer.
A composição de 30% no total de cadeiras reservadas pelo Cannes Lions ao Brasil coincide com o índice de presença de negros nas equipes das agências de publicidade brasileiras, de acordo com a amostra participante do primeiro Censo de Diversidade das Agências Brasileiras, realizado pela consultoria Gestão Kairós para o Observatório da Diversidade na Propaganda, que tem seus dados revelados pela reportagem das páginas 12 e 13.
A análise dos resultados leva a duas constatações que provam as dificuldades do mercado em evoluir em equidade, diversidade e inclusão, mesmo com toda a pressão que sofre de maneira mais incisiva nos últimos anos. A primeira delas é a de que as agências sequer conseguiram ultrapassar a barreira quantitativa de ter pessoas mais diversas em seus times e, especialmente, entre os dirigentes.
Maioria no total de funcionários (57%), as mulheres minguam para 15% entre CEOs e presidentes. No caminho contrário, os homens são 43% do total e ocupam 85% das cadeiras de comando. O recorte racial também é gritante: 30% do total, os pretos tos e pardos são 10% dos profissionais que ocupam níveis de gerência ou superiores e 8% dos CEOs e presidentes — entre os líderes principais, não há mulheres negras nem pessoas com deficiência, que são apenas 1,6% do total das agências pesquisadas.
A segunda constatação emerge da baixa adesão do mercado ao Censo, não respondido nem mesmo por algumas das empresas filiadas ao Observatório da Diversidade. O esforço da entidade conseguiu coletar informações de 24 agências, que, juntas, empregam 6.266 funcionários — mais da metade das 30 maiores agências do País já está entre as fundadoras ou apoiadoras do Observatório, mas o medo da exposição ainda afasta posturas mais colaborativas.
Para acelerar as ações de ocupação de espaços, enfrentar a inação corporativa e corrigir distorções históricas, o trabalho ativista continuará exigindo o que o presidente da Central Única das Favelas, Preto Zezé, costuma chamar de “constrangimento pedagógico”.
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