Propaganda é inútil
Talvez devamos olhar para nossa profissão com um pouco de humildade e de autoironia
Talvez devamos olhar para nossa profissão com um pouco de humildade e de autoironia
22 de fevereiro de 2023 - 13h00
Confesso que nunca tinha sentido tanta inveja, muito menos de um carro.
— Moço, moço, posso tirar uma selfie na frente do seu carro?
Tudo tem uma primeira vez.
— Não. E ele também não vai lhe dar um autógrafo.
O que faz uma pessoa querer tirar uma foto na frente de um carro é o que faz uma pessoa vencer todos os obstáculos, sejam eles racionais (preço, qualidades) ou emocionais (merecimento, culpa), na hora de colocar a mão no bolso e comprar. Esse je ne sais quoi – esse borogodó, “plus a mais”, coceira na nuca, taquicardia, fogacho na espinha, sudorese na testa – também é conhecido por valor de marca.
Não dá para resistir a esse apelo transcendente. Muita gente já teve essa descarga de adrenalina inebriante de vencer o medo, a dúvida e a insegurança de comprar algo não necessariamente previsto ou calculado ou, então, pagar por algo que seu confessor disse que você racionalmente não precisava. Essa delícia louca vai, via de regra, desencadear depois um formidável arsenal de justificativas que nem o mais cartesiano dos profissionais de marketing seria capaz de “briefar”.
Mas o fenômeno é pouco estudado, porque nossa fôrma é de uma racionalidade cheia de interdições.
Talvez devamos olhar para nossa profissão com um pouco de humildade e de autoironia. E se fizermos um exame de consciência muito honesto, talvez possamos admitir que nosso trabalho não é propriamente uma necessidade imperiosa, urgente e vital da humanidade. Nossas profissões não são tão essenciais assim. Sabemos que o indispensável se vende por meio de ferramentas semiautomatizadas. Sabemos que, para vender o que as pessoas precisam, gabaritar as etapas do funil é suficiente, sem carecer de muita originalidade ou criatividade. Mas é na arte de suscitar inúteis desejos que somos imbatíveis e indispensáveis.
São escassos, porém, os briefings que apontam essa fútil finalidade da propaganda, porque quem, em sã consciência, quer dizer que trabalha com algo supérfluo, vazio, inócuo? Quem quer admitir que trabalha para fazer as pessoas tomarem decisões loucas, apaixonadas, irracionais? Então, a gente vai atrás de verdades, dados, fatos. A gente enche os pedidos de técnica, performance e comparações. E a gente descarrega tudo isso na propaganda, com a falsa crença de que é isso o que vai convencer o consumidor.
Convenhamos: isso podia convencer as pessoas no passado, quando as informações eram mais difusas e escassas, mas para que diabos ainda serve fazer o produto ou a marca gabar-se de ser mais isso ou aquilo quando tudo, absolutamente tudo, está ao alcance de qualquer pesquisa, a dois cliques de distância?
Ironias à parte, o que devemos mesmo é definir, ou redefinir, em comunicação e marketing, o que é indispensável e o que é menos indispensável, o que convence mais e o que convence menos, o que é útil e o que é menos útil.
O que é mais útil: exibir um vaso de flores ou guardá-lo para não quebrar? Lambuzar-se de chocolate ou engolir uma gororoba de alta performance? Dançar até o sol raiar ou vestir pijama e touca para não cansar a beleza? O que é mais útil? Uma decoreba de qualidades ou uma imersão em uma bela história?
Sob esse ponto de vista, a propaganda racional parece certa perda de tempo para os consumidores. Parece um desperdício de investimento para quem a faz.
No dia em que alguém postar uma selfie com uma feature, um carburador, um amortecedor, uma rebimboca, uma parafuseta, a gente muda de opinião.
Em tempo, o carro era um Jeep Gladiator 2022. Em tempo, novamente, o carro não era meu. Foi-me gentilmente emprestado pela Stellantis. Baita inveja.
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