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Quando o acionista atrapalha o produto

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Opinião

Quando o acionista atrapalha o produto

A maioridade do bom jornalismo acontece quando o acionista entende que é apenas acionista, não jornalista


8 de novembro de 2024 - 6h00

Durante muitos e muitos anos jornais do mundo inteiro representavam no papel as ideias de seu dono – e dos amigos. Acionistas de TVs, rádios e jornais eram muito poderosos, mexiam com as emoções da audiência, conseguiam eleger prefeitos, governadores e até presidente da República.

Mas isso mudou. A mídia entendeu que para ser confiável precisa representar as ideias dos leitores, dos ouvintes, dos espectadores. Isso é mais importante que as ideias do dono, para o sucesso do negócio. E assim, aos poucos, jornais separaram notícia de opinião. Notícia precisa ser bem apurada, factível. Opinião pode ter lado, defender princípios – e os acionistas encontraram ali seu espaço.

Pouco a pouco uma nova mudança nesse perfil ocorreu: marcas se identificaram com causas – e até com lados e candidatos. Nos Estados Unidos, por exemplo, grandes marcas recomendam voto no candidato A ou B em função do que pensa esse candidato. O jornal que revelou o escândalo de Watergate – que resultou na renúncia do então presidente republicano Richard Nixon, em 1974 – sempre apoiou o candidato do Partido Democrata. The Washington Post abriu voto para Jimmy Carter, em 1976, e sempre em Democratas até Joe Biden, em 2020.

Então o The Washington Post vai apoiar Kamala Harris, certo? Errado.

Jeff Bezos, dono da Amazon e acionista do The Washington Post desde 2013, decidiu que a partir de agora a marca não abrirá voto para nenhum candidato. Nem Kamala Harris, nem Donald Trump. Segundo ele, o Post precisa voltar às origens e tratar todos os candidatos por igual, mesmo em Opinião. A ideia até poderia fazer sentido, se fosse o posicionamento dos 2,5 milhões de assinantes. Só que não. Leitor do meio de Bezos é democrata, vai votar em Kamala e quer que o Post concorde com isso.

O resultado imediato foi terrível. Nada menos do que 200 mil assinantes cancelaram a assinatura. Se todos esses leitores tinham o plano mais básico e barato, o prejuízo do The Washington Post foi de US$ 800 mil por mês, a bagatela de R$ 4,4 milhões a cada 30 dias.

Mais: três dos 10 membros do Comitê Editorial renunciaram em conjunto. Não aceitam o recuo da histórica marca. O texto de apoio à candidata já estava pronto para ser publicado, mas Bezos puxou o freio de mão. Ele alega que tomou a decisão em nome da imparcialidade. Analistas americanos garantem que o motivo é econômico: empresas de Jeff Bezos fazem negócios com o governo, independentemente do partido. Para evitar retaliações, o dono da Amazon prefere não provocar.

Tremenda bobagem. Tiro de escopeta no pé. Decisão parecida com a do acionista do Los Angeles Times, Patrick Soon-Shiong, que também proibiu sua marca de apoiar Kamala Harris. Mas a desculpa seria supostamente a falta de um posicionamento mais duro contra Israel a respeito da guerra em Gaza. Desculpa tão verdadeira como uma cédula de US$ 3. Os bons jornalistas do Los Angeles Times se demitiram imediatamente. Crise no jornalismo da Califórnia.

A maioridade do bom jornalismo acontece quando o acionista entende que é apenas acionista – não jornalista. Acionista do McDonald’s não precisa comer Big Mac todos os dias. Seu objetivo é ganhar dinheiro. Quem quiser comer seus sanduíches que coma, ele agradece. Acionista da Pfizer não fica tomando remédios sem necessidade. Acionista é acionista. Na maioria das vezes administra o negócio, mas deixa o conhecimento do produto para profissionais da área.

Só que acionista de um meio de comunicação se considera jornalista. E quer opinar sobre tudo. É um vício. Às vezes, até monta um Comitê Editorial recheado de amigos para garantir aplausos. E enfia ideias sem sentido na redação. Isso mostra poder, embora ameace a integridade do negócio.

No Brasil, são raros os meios editoriais que apoiam – em Opinião – algum candidato. Preferem recuar, fingir indiferença. Há quem chegue a afirmar ser “uma escolha difícil” a opção do segundo turno, quando duas visões antagônicas disputam um cargo. É medo. Falta de coragem disfarçada de imparcialidade. Um golpe certeiro contra todos os assinantes, imaginando que a audiência é global, aberta. Mais um dogma sem o menor sentido. E que tem como consequência o abandono da marca pelos leitores.

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