Quando todos somos Shakespeare
A dramaturgia sempre se conectou com o público por meio da empatia, capacidade que ganhou importância desde que a construção de interfaces se tornou parte das nossas mentes criativas
A dramaturgia sempre se conectou com o público por meio da empatia, capacidade que ganhou importância desde que a construção de interfaces se tornou parte das nossas mentes criativas
Em um dos momentos mais marcantes do ano passado, Bob Dylan foi laureado com o Prêmio Nobel de Literatura. Uma honra gigantesca para qualquer escritor, teve ainda mais significado por se tratar de um compositor popular. Sua interpretação da homenagem foi extremamente relevante para nós batalhadores das artes criativas, qualquer uma delas, das mais simples às mais refinadas.
Dylan não compareceu à cerimônia. Não por descrédito, desrespeito ou arrogância, mas pelo cumprimento dos compromissos e rituais que seu papel de músico popular exige. No discurso de agradecimento, lido pela embaixatriz norte-americana na Suécia, lembra a natureza de seu trabalho e dá uma aula definitiva sobre empatia.
Um elogio às artes criativas mundanas e seu poder de conexão com as pessoas comuns, vindo de um super-herói do nosso mundo: “Receber o Nobel de Literatura é algo que eu nunca poderia ter imaginado”. E segue no seu pensamento, lembrando que o sucesso em seus planos juvenis tinha a forma de discos gravados e canções tocando no rádio. “Se alguém me dissesse que eu teria a menor chance de ganhar um Nobel, eu diria que a probabilidade era a mesma de eu pisar na Lua.”
O pensamento não parece originado em nenhuma humildade descabida ou falta de imaginação, mas na mente constantemente povoada por detalhes totalmente desconectados da literatura. Coisas fundamentais para seu trabalho como os músicos que vão gravar suas canções, a qualidade do estúdio e a afinação da banda. A ideia fica cristalina quando ele lembra que Shakespeare não se imaginava como um literato, mas era um dramaturgo preocupado com o palco, com escrever e encenar suas palavras. Quais são os melhores atores para Hamlet? Como deve ser o cenário? Precisa mesmo ser na Dinamarca? Dylan continua o raciocínio emulando um Shakespeare que mais parece um personagem de suas canções… Já temos o financiamento todo? Temos lugares suficientes na plateia para nosso público? Onde é que vou arranjar um crânio humano?
O processo de conexão com o público por meio da empatia sempre esteve presente na dramaturgia, assim como na tradição musical dos bardos que inspira Bob Dylan. Empatia ficou de novo importante desde que a construção de interfaces se tornou parte das nossas mentes criativas. Não se criam interfaces ou sistemas interativos sem conectores emocionais mundanos usados como armadilhas para introdução a alguma experiência nova. O crânio de Hamlet é a porta que liga nossa paixão com a completa doideira emocional que Shakespeare consegue acessar de uma forma simples e direta. É uma interface para um sistema complexo.
Tenho um amigo que toda hora perguntava: já pensou no stress que o professor de inglês do Shakespeare passava? Ele se divertia imaginando um mestre lidando com as invenções de uma criança muito além de seu tempo. Quanto trabalho ele tinha para enquadrar a curiosidade daquela criança indisciplinada numa ordem que presumia soluções bem mais simplistas. Talvez ele nem entendesse o jogo sofisticado à sua frente e visse tudo aquilo como puro desafio ao correto.
Ou será que não foi nada disso? Talvez a criança talentosa tenha encontrado em seu tutor o estimulo de outra mente curiosa, que abria espaço para sua revolução enquanto ela mesma brincava de pega-pega. Difícil saber. É certo que em algum momento ele tenha descoberto a chave que, magicamente, fazia com que as pessoas entendessem seu jogo e se abrissem para sua viagem. E nascia um gênio.
É justamente nestes momentos que Bob Dylan e Shakespeare ficam iguais a todos nós. Quando se tornam geniais por se tornarem normais. Quando abrem a porta de empatia e fazem a ponte entre suas percepções extraordinárias e nossa compreensão limitada. Aberturas cuidadosamente construída para aqueles mundos especiais.
Robert Zimmerman nunca gostou muito de dar explicações sobre o comportamento de seu personagem preferido, Bob Dylan. Mas foi Dylan quem ganhou o prêmio. Também tenha sido ele quem resolveu nos conduzir num discurso quase em forma de canção, para que entendêssemos a importância daquele momento. Ele sabe tudo sobre empatia.
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