Quem controla sua narrativa?
Meu cérebro tem como mecanismo procurar correlações entre histórias diferentes, então divido aqui observações recentes que me conectaram com um grande tema: controle de narrativa
Meu cérebro tem como mecanismo procurar correlações entre histórias diferentes, então divido aqui observações recentes que me conectaram com um grande tema: controle de narrativa
Janeiro de 2023 pareceu eterno. De tentativa de golpe e ato terrorista à estreia do BBB, quem não se sentiu sobrecarregado, não estava prestando atenção. Então, a proposta dessa conversa é mais aberta. Meu cérebro tem como mecanismo procurar correlações entre histórias diferentes, então divido aqui observações recentes que me conectaram com um grande tema: controle de narrativa.
O primeiro acontecimento que acendeu uma faísca foi o discurso da Jacinda Ardern. Logo depois, li o novo livro do Príncipe Harry, O que sobra. Segue o fio.
Tanto Jacinda quanto Harry são pessoas em posição de liderança, conquistada ou herdada, com uma escala de influência muito além dos seus países de origem. A sociedade, de forma geral, tende a ver a vida dessas pessoas como algo de domínio publico, tanto a profissional quanto a pessoal. Jacinda é uma primeira-ministra jovem, e mulher. Harry, um príncipe da família real britânica, hoje em quinto lugar na linha de sucessão da Coroa. Dois personagens que carregam muito mais do que suas trajetórias e escolhas individuais, extremamente frutíferos para gerar engajamento.
Em torno deles, um ecossistema de jornais, cidadãos com redes sociais, perfis de fofoca, veículos de mídia que sabem como chamar atenção quando contam suas próprias versões e interpretações dessas histórias. E, muitos, sem um compromisso total com a verdade.
Já vimos muitas pessoas terem crises de ansiedade, burnout, breakdowns por terem que lidar com versões não reais de suas próprias histórias. Headlines, recortes feitos com a intenção de gerar reações, independentemente do que isso possa causar na pessoa.
Harry e Jacinda têm trajetórias diferentes. Não são pessoas que foram em busca da fama, mas a têm por serem quem são, por terem a função que têm. Uma chefe de Estado e um príncipe. Ambos vivem com regras, deveres e muito controle como parte da rotina. Um radar ligado diariamente, sendo policiados e se policiando. Um nunca relaxar. Um descuido e tudo pode ir por água abaixo. Ou pelo menos é isso que querem que eles pensem e sintam.
Jacinda Ardern, e tenho certeza de que vocês foram impactados por essa notícia, comunicou que ficará no cargo de primeira-ministra até 7 de fevereiro, mas que depois disso não vai tentar a reeleição pois sabe muito bem o que esse trabalho demanda, e reconhece que não tem mais “gasolina no tanque” para fazer jus ao espaço que ocupa. “Simples assim”, disse ela.
Refletida em vários artigos que li, sua atitude também me chamou muito a atenção e me trouxe uma alegria e esperança de lideranças mais humanas, mais conscientes do seu impacto para além do próprio poder. Mas o aspecto que quero ressaltar é sobre como ela definiu e controlou sua própria narrativa. Fez de uma forma tão surpreendentemente honesta e vulnerável, deixando pouco espaço para as especulações e teorias sobre supostas reais motivações.
Estamos tão acostumados com discursos que claramente são textos redigidos com uma linguagem padrão e pré-fabricada, que tentam distanciar a pessoa do fato e evitar ao máximo mais exposição, porém acabam alimentando mais ainda a curiosidade alheia -“Terminamos, porém, somos amigos”, “Chegou ao fim, mas o amor permanece”, “Renuncio para cuidar de outros projetos”. Ela podia ter dito algo assim, mas optou pela sua verdade, e em um mundo de textos de rompimentos e partidas padronizados, que poder uma verdade tem. Dessa vez, ela definiu sua própria headline.
Príncipe Harry, em seu livro, nos abre uma porta do Palácio de Buckingham que dá acesso a muitas coisas que antes ficavam apenas no imaginário coletivo. Sem grandes spoilers, ele nos conta que a razão desse livro existir é mais uma tentativa de fazer seu pai, o rei Charles, e seu irmão, o príncipe William, entenderem (ou reconhecerem) por que ele rompeu com a família real e saiu do Reino Unido. Foram muitas as críticas por ele não ter tratado esse assunto “dentro da família”, e ele nos conta que foi uma vida de tentativas de ser visto, ouvido e compreendido.
Harry sempre lidou com a mídia controlando sua vida, e muitas vezes alimentada pela sua própria família como moeda de troca em momentos de crise. A morte da princesa Diana, sua mãe, perseguida por paparazzis e continuamente explorada anos depois, teve que ser gerenciada por um menino de 14 anos que não podia, por regra, expressar suas emoções.
A entrada de Meghan Markle em sua vida escalou o problema. Uma outra mulher que ele ama, perseguida por uma mídia racista, sendo alvo de críticas dentro e fora da família. Uma história que, apesar de em momentos diferentes, na sua visão, se repete. E é aí que ele encontra uma forma de ter algum tipo de controle sobre sua própria narrativa. Contar a sua própria história, do seu jeito, sem intervenção prévia dos escritórios de PR da família real ou da mídia.
O livro não é uma forma de ele se defender, mas uma forma de se encontrar. Ele nos mostra o seu bom e o seu péssimo, seus grandes erros, suas tentativas de criar uma identidade para além da Coroa. Tentativas todas, de uma forma ou de outra, frustradas. Esse livro se apresenta como mais uma tentativa.
Jacinda e Harry, como disse no começo, foram faíscas para esta conversa. O BBB é um lugar onde quem entra perde o controle da própria narrativa, e torce para editores de vídeo e administradores de perfis conseguirem fazer jus ao que passa em suas mentes. E quando saem pela porta, precisam lidar com as consequências de todas as suas atitudes. Ali, vemos pessoas que buscam a fama, que optam pela exposição em troca da ideia de uma nova vida e só vão entender o real preço disso depois. Seja qual for a motivação, tem-se que lidar com a independência que sua história cria, nas mãos de outras pessoas.
Me fez pensar que em uma situação de falta de controle, o que pode manter nossa sanidade mental é o quanto conseguimos seguir conectados e expressar nossa verdade. A verdade tem um poder imenso, ainda mais nesse janeiro de 2023.
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