Quem tem medo de creator?
Se criar significa inserir-se humildemente em uma longa cadeia de infinitas inspirações, o artista é um curador na sua essência mais profunda
Se criar significa inserir-se humildemente em uma longa cadeia de infinitas inspirações, o artista é um curador na sua essência mais profunda
De tempos em tempos, aos sabores dos guéri-guéris internacionais e de seus ecos tupiniquins, dando trela para a brisa das plataformas e dos luminares das redes sociais e seus rebanhos, tudo muda. O que era não é mais, e o que é tem que ser já. Os saudosistas chamam de modinha; os oportunistas cravam suas credenciais na nova ordem; e os pragmáticos arregaçam as mangas sem histeria nem ceticismo.
O que tem de prático com o frisson da economia dos creators? Até pouco tempo, as big ideas desciam de seu Olimpo e, qual maná sagrado, fluíam pelos veios da mídia autoritária e parca, mas poderosa. Acabou, galera. Esse papinho de zelador da ideia santa já era. Bora baixar a bola? Tem um povo grande e cheio de fome e de vontade chegando. Espalhado. Muito espalhado. E todos umas “mini-Globos”. Essas pessoas coloridas, alegres e afins falam de igual pra igual com seus seguidores. Não tem media training, não tem “padrão de qualidade”, não tem processo nem briefing cabresto. A diferença não é só que elas são muito numerosas, não é só que elas são criativas, é também que elas falam a linguagem certa, no tom certo e na qualidade certa, porque elas são da mesma galera que seus fãs.
A gente fala “delas” como se fossem, de fato, um setor e um negócio, com suas regras próprias e consensadas. Não é, e dificilmente será, porque “elas” somos nós todos. A promessa da internet – lembram? – de que todos terão voz e que essa voz terá valor está acontecendo. Quem curtia essa profecia, pelo seu caráter libertário, democrático e sem fronteiras, não pode agora ficar de “não mete a mão no meu privilégio”. E, por falar em privilégio, quem, de fato, cria ou tem o sonho de assim imitar o divino logos caça a Musa onde estiver. Nem a experiência nem o clube dos eleitos dá qualquer tipo de waiver para acessar o mar de ideias que circula nas redes. Pelo contrário, quanto maior for o filtro pretensioso, mais reacionária será a ideia. Pablo Picasso, Myrlande Constant e Jaider Esbell não seriam convidados para o Festival de Publicidade Cannes Lions.
Se, em um instante de humildade, mudarmos o prisma vaidoso que vê a criatividade como um dom individualizado; se, em um instante de curiosidade, aceitarmos que a colaboração está na essência de toda a criação humana, inclusive a artística, então, talvez a gente possa ver oportunidades em vez de ameaças. Talvez, também, essa ecologia criativa que a internet abriu e multiplicou seja a redenção da concentração possessiva, da “over-valorização” insustentável e, principalmente, da mentira que consiste em acreditar que as ideias são uma espécie de unção divina.
Talvez o “liberou geral” preocupe e assuste. É compreensível. Mas, de verdade, o que mudou? Se criar significa inserir-se humildemente em uma longa cadeia de infinitas inspirações, o artista é um curador na sua essência mais profunda. Sensível, ele peneira fios de ideias para tecer sua própria voz. De outra perspectiva, e por fim, há quem veja, nessa explosão, uma oportunidade de se aproveitar da onda para desvalorizar a importância da ideia. Ou, mais diretamente, há quem veja nisso o que se via no começo da internet comercial, a saber, “bora derrubar os preços e fazer propaganda mais barata”. São as mesmas pessoas que acreditam nas ferramentas de IA para baratear talentos. A elas, boa sorte com o bric-à-brac. Escolher custa caro.
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