Roteiristas argentinos
Apesar de a Argentina estar fora do circuito dos grandes investimentos do mundo faz um tempo, o cinema do país parece não conhecer limites a suas ousadia e excelência
Apesar de a Argentina estar fora do circuito dos grandes investimentos do mundo faz um tempo, o cinema do país parece não conhecer limites a suas ousadia e excelência
Pelé tem mais Copas do que a Argentina, mas o Luís Puenzo tem mais Oscars que o Brasil. Não paro de me impressionar com a qualidade dos contadores de histórias do país hermano, notadamente a dos roteiristas e diretores de cinema, que no mais das vezes habitam o mesmo ser. Apesar de a Argentina estar fora do circuito dos grandes investimentos do mundo faz um tempo, o cinema do país parece não conhecer limites a suas ousadia e excelência.
Puenzo ganhou um Oscar de Filme Estrangeiro em 1986, com um filme-denúncia contra a ditadura, A História Oficial, feito ainda em época muito perigosa. Campanella repetiu o feito em 2010 com O Segredo dos Seus Olhos, uma trama surpreendente de altíssimo nível. No ano passado, o suspense Neve Negra e a comédia que se revela um drama Cidadão Ilustre continuaram atestando um cinema inventivo e sempre voltado a tocar um nervo da nossa existência, deixando o “mercado” em um segundo plano. Sobre Cidadão Ilustre, adicione-se ainda o fato de o filme ser paupérrimo em termos de produção (na verdade, não sei se é efeito ou defeito aquela fotografia tosca). O fato é que os personagens, os acontecimentos e o final me deixaram em estado de profunda reflexão.
Entre 1980 e hoje, um rosário consistente de ideias originais, com artesanato primoroso. Comédias inteligentes como Nove Rainhas, O Filho da Noiva e Um Conto Chinês se apegaram a situações muito particulares para construir ao mesmo tempo gargalhadas e lágrimas. É de O Filho da Noiva, um filme comovente, uma das melhores piadas da história do cinema.
Em outras linguagens, eles também dão um show. O Clã é claustrofóbico e revoltante. O Médico Alemão, de Lucia Puenzo, filha de Luís, transforma monotonia quase documental em tensão pura. Medianeras é romântico, leve e cativante. Relatos Selvagens é insólito, cruel e engraçado. Kamchatka é um filme sobre a ditadura que não mostra nada, mas diz tudo por meio da visão de um menino, uma pérola que reinventa a denúncia. Não podem faltar na lista O Abraço Partido, Plata Quemada,
Creio XXY (mais um de Lucia Puenzo), Truman, o Décimo Homem e… Ok, esqueci vários, mas já fiz o ponto da consistência.
Não há complexo de inferioridade aqui. Nosso cinema brasileiro tem capítulos muito interessantes também, e podemos até, em outra ocasião, fazer uma edição que nos conte uma história épica. Não se trata de comparar, e sim de reconhecer que os argentinos têm uma produção de roteiros das melhores do mundo e tentar entender o que os levou a isso. Minha hipótese mais forte é a de que, apesar da longa crise argentina, que já dura décadas, ou talvez por causa dela, os artistas argentinos ainda vibram com uma ideia, se excitam com uma frase bem feita, se permitem dominar por personagens inventados, choram com cenas bem escritas e dirigidas. E, principalmente, resistem ao clichê e ao riso fácil.
Enquanto não chegamos a uma conclusão sobre isso, permita-me uma sugestão: da próxima vez que você pensar em maratona de séries para o final de semana, considere uma maratona de cinema argentino, para variar.
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