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Sob as lágrimas de Deus

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Opinião

Sob as lágrimas de Deus

Nos últimos anos, muitas vezes escrevi, dei palestras e executei projetos considerando a urgência de entendermos o lugar do mundo em que estamos agora e de, ao fazermos isso, percebermos o papel que as corporações e suas lideranças têm na construção do mundo em que queremos viver


3 de março de 2020 - 9h53

(Crédito: Reprodução)

Janeiro de 1979. Naquelas semanas havia se tornado comum encontrar minha mãe e minha avó observando o rio. Junto com outros vizinhos, elas haviam colocado marcas bem próximas à margem para que fosse possível perceber até o menor sinal de transbordamento.

Observar o rio havia se tornado um hábito comum naquele tempo de chuva intensa. Dia após dia, homens e mulheres se colocavam em posição de vigília, sentiam o solo, olhavam para a cor e a posição das nuvens, cheiravam a terra, sentiam o vento e concluíam o quanto estávamos, ou não, em situação de perigo. “Neblina cobrindo a serra, chuva na terra”, dizia minha avó, em tom desanimado, ao olhar para cima dia após dia. Naquele janeiro, Deus não parecia feliz e o céu parecia derramar suas lágrimas sobre o rio com tanta força e insistência que a tristeza se misturou ao medo e começou, aos poucos, a tomar conta de todos nós.

O rio que todos vigiavam era um rio aprisionado pelo aterramento. Ainda é. Na voz dos mais velhos, ouvíamos histórias que contavam de sua imensidão e força dezenas de anos antes de resolverem ampliar e ocupar suas margens. Aqui e ali, havia sempre alguém contando uma história do tempo em que era possível navegar, pescar e nadar em suas águas. Nunca entendi por que isso mudou, só sei que nem todo mundo achava isso bom. “Rio preso não é rio morto, rio preso tá bem vivo e tem raiva, uma hora ele consegue se soltar e daí vai querer de volta o que é dele”, diziam os que acreditavam que era só uma questão de tempo para que boa parte da cidade estivesse coberta pela água.

Observar o rio todos os dias tornou-se um hábito, mas sua eficácia era pouca. Mesmo fruto de muita união, a ação de nossos pais e dos pais de amigos não era suficiente para nos manter seguros. Rios, por maiores que sejam, são trechos de caminhos ligados a outros caminhos. Mesmo que não chovesse na parte do caminho que conseguíamos ver, uma tromba d’água, muito comum na região, ou uma chuva forte na nascente do nosso rio ou de um rio que nele desaguasse poderia fazer tudo mudar da noite para o dia. Era comum irmos dormir sem saber se a água do rio ia nos encontrar antes de conseguirmos sair, se íamos ou não colocar os pés no chão ainda seco na manhã seguinte.

Ninguém sabia o que fazer. Sair, correr, levar o carro, os móveis, a geladeira, a TV, as roupas, as crianças para outro lugar parecia fazer tanto sentido! Mas onde mesmo ficava o lugar seguro? Nossa cidade foi construída a partir do rio, muitas famílias viviam em seu entorno. Muitas pessoas, conquistas, histórias, muitos sonhos. Fora isso, casas não são paredes. Casas ganham vida quando vivemos nelas, nossa vida. Casas aprendem nossos gostos, sabem quem somos, nos recebem, acolhem, protegem. Não importa quantos quartos tenham, se feitas de pau a pique ou de cimento armado, se sustentadas por estruturas de ferro ou por troncos de árvore, se finalizadas com tacos ou terra batida. Abandonar nossa casa, mesmo sob ameaça, não é assim tão simples quanto pode parecer. Melhor ficar e esperar.

Naquele dia, a água chegou rápido. Ainda me lembro de subirmos o morro carregando bolsas, malas, brinquedos, o que deu para levar. No nosso caso, muita coisa, mas essa não foi a realidade de todos. Um vizinho que morava em uma parte alta da rua cedeu espaço para que as pessoas que moravam na parte baixa levassem parte de seus pertences. Na nossa rua, ninguém foi para abrigos, todos tinham famílias ou amigos em condição de nos receber, mas não foi igual em todas as ruas. Ninguém se machucou nem ficou doente na família, mas as lágrimas que o céu derramava invadiram os olhos de minha mãe. Durante vários dias, observamos de longe a água subir até que apenas o telhado da nossa casa pudesse ser visto.

Mais vários dias se passaram até que as águas se acalmassem. A cheia deu lugar a ruas barrentas, repletas de carros atolados, sofás, geladeiras, roupas, móveis, esgoto, lixo. Não é como se a banheira de casa transbordasse. Em rios, águas caminham em correntes e têm força e velocidade. Em sua trajetória, varrem o fundo e as margens trazendo à tona tudo o que somos, revelando nossa indiferença e falta de cuidado com o que nos sustenta e estrutura. Depois da cheia, durante meses a cidade cheirou a água podre, um cheiro que parecia invadir tudo. Nas casas inundadas, paredes manchadas, móveis e roupas enlameados. Nem todos podiam repintar tudo ou trocar por um novo. Nessa hora, a água ganhava outro significado e era procurada, mas nem sempre encontrada, limpa e usada para lavar tudo. Na rua, um ajudava o outro. Todos perderam e todos sabiam o que isso significava.

Em nossa casa, o sofá recuperado da enchente foi lavado várias vezes e permaneceu na sala por anos. Ele nunca mais cheirou bem. Não posso dizer que isso nos fez lembrar todo o tempo do que havia ocorrido. Não tinha mesmo como esquecer. O sofá era só uma constatação do que a família viveu e nossa mãe nos ajudou a ver que não tínhamos motivo para reclamar. Muito do tempo dela foi dedicado a famílias que perderam muito mais do que nós. Várias vezes fomos com ela ver os contêineres de doações de roupas que chegavam do mundo todo, algumas dessas vezes como atingidos pela inundação. Era quando minha mãe dizia sorrindo que devíamos ficar felizes por vestir roupas importadas.

Com os anos, a memória desse tempo pareceu ter desaparecido. Nunca mais voltamos para nossa casa. No final dos anos 1980, deixamos nossa cidade, minhas irmãs se casaram, todas fizemos faculdade, minhas sobrinhas e sobrinho nasceram e a vida continuou seu curso, como as águas daquele rio.

Janeiro de 2020. 40 anos depois do rio ter voltado ao seu lugar de aprisionamento, a população em torno de sua margem se tornou maior e gerou mais esgoto e lixo. Em uma manhã, acordei com vídeos e imagens publicadas nas redes e grupos da família onde meus amigos de infância contavam que as águas haviam, novamente, reclamado seu lugar. Dessa vez, foi pior, muito pior.

Dos dias da minha infância para hoje, buscando mais segurança, quem morava próximo ao rio construiu um segundo andar, para onde todos se mudavam em tempos de cheia. Como eu disse, não é simples deixar a casa onde vivemos. Mas, desta vez, uma tromba d’água muito forte fez a água chegar em ondas, derrubando portas de aço durante a madrugada e invadindo os andares altos. De São Paulo, assisti a familiares e amigos perderem tudo. Mesmo longe, o cheiro de água podre invadiu meu corpo e as lágrimas que vi o céu derramar, desta vez, invadiram os meus olhos.

Nos últimos anos, muitas vezes escrevi, dei palestras e executei projetos considerando a urgência de entendermos o lugar do mundo em que estamos agora e de, ao fazermos isso, percebermos o papel que as corporações e suas lideranças têm na construção do mundo em que queremos viver. As lágrimas que derramo agora me fazem lembrar que não somos nada separados. A rua onde eu morava em Manhuaçu não é diferente das avenidas Paulista, Faria Lima ou Berrini. Como o rio que minha mãe e minha avó observavam, nossas ruas são trechos de caminhos que estão interligados a outros nos mostrando que não existe o meu problema e o seu, só existe o nosso e só podemos resolvê-lo juntos.

*Crédito da foto no topo: Tookapic/Pexels

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