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Sobre cenários e estratégias

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Opinião

Sobre cenários e estratégias

Será questão de pouco tempo para que o debate sobre a regulamentação de toda forma de publicidade digital ameace a viabilidade de diversos modelos de negócio que floresceram nos últimos anos


26 de novembro de 2019 - 13h23

(Crédito: Alphaspirit/ iStock)

Os embates entre governos e grupos sociais através do uso de produtos e serviços dos gigantes da tecnologia será decisivo para o futuro da publicidade e do marketing digital. Essa é uma das implicações dos cenários apresentados pela Shell no último Web Summit de Lisboa, que acompanhei através da cobertura do Meio e Mensagem. Embora não estivesse presente, conheço um pouco da metodologia de cenários da Shell, que começou a ser sistematizada em meados dos anos 1970, e que utilizo há quase 20 anos. Entender o impacto das suas premissas sobre a estratégia da sua agência, veículo ou departamento é tão importante quanto entender o cenário em si (você encontra um resumo da metodologia neste link  ou, para uma visão mais estruturada e detalhada, em “Scenarios: an explorer’s guide” ).

A construção de cenários é um exercício organizacional complexo, no qual o objetivo não é descrever a probabilidade de resultados financeiros (como no caso dos forecasts) ou vender palestras (como no caso da “futurologia”). Ela não busca “prever o futuro”, mas direcionar ações estratégicas em função da sua presença em múltiplos cenários (existem publicações voltadas exclusivamente para essas discussões, sendo que o Journal of Long Planning é uma das melhores ). Isso é feito avaliando como diferentes tendências políticas, econômicas, sociais, tecnológicas, ambientais e regulatórias se combinam em dois ou três grandes eixos (o contexto sócio- técnico) e como a correlação dessas forças vai afetar o mercado e a estrutura da organização entre cinco e dez anos (no caso das empresas de bem consumo ou serviços; em infraestrutura, esse horizonte de tempo passa para até 20 ou 30 anos).

Essa metodologia de eixos de tendências permite observar como elas se influenciam reciprocamente e construir indicadores que funcionam como um sistema de “early warning” para indicar a direção em que os negócios estão evoluindo. E, não menos importante, ajuda a eliminar o que o Nobel de economia Daniel Kahneman chama de “falácia narrativa”: pensarmos o futuro como uma extrapolação linear do passado, um hábito frequentemente responsável por vermos empresas “pegas de surpresa” com movimentos de mercado que, olhando em retrospecto, eram óbvios. Ao aplicar esse método sobre a digitalização, os estrategistas da Shell identificaram três grandes forças: as empresas de tecnologia, os governos e a sociedade (você encontra o estudo completo aqui). Um pequeno passo que tomo aqui é pensar como isso vai influenciar as empresas do nosso setor (e vale a pena você pensar como vai impactar especificamente a sua organização).

Se as forças sociais e governamentais prevalecerem sobre as empresas, teremos o cenário “ilhas digitais”, onde as regulamentações específicas de cada país dificultam a difusão da tecnologia e a padronização de diversos procedimentos, como, por exemplo, a coleta e análise de dados e a compra e venda de publicidade digital, permitindo às empresas locais um maior espaço de crescimento. Isso, provavelmente, vai abrir boas oportunidades nas áreas de produção de conteúdo nacional e nos setores jurídicos das empresas de comunicação, mas, ao mesmo tempo, vai tornar mais difícil a vida das holdings, que terão um maior custo para operar em diferentes países e enfrentarão grandes dificuldades na adaptação de campanhas globais.

No cenário “Plataforma Abertas”, é a interação entre os diversos grupos sociais e as grandes empresas de tecnologia que prevalece sobre o poder regulatório dos governos. Nesse caso, se intensificam os meios e as práticas de coletas e análises de dados em escala transnacional, o que, para nosso setor, facilita o desenvolvimento de campanhas globais e adaptação de conteúdo de um país para o outro, além do uso de múltiplos canais construídos ao redor da existência do usuário (as marcas terão estratégias “omnichannel” para cada consumidor). Nesse caso, o jogo passa a ser de escala, o que significa que empresas e grupos de comunicação ficarão cada vez mais dependentes das estratégias das grandes corporações tecnológicas. E, nesse cenário mais desregulado, a automação avança com maior velocidade sobre os empregos e a distribuição da renda, criando (e destruindo) nichos de consumo e de mídia de forma ainda mais intensa do que vimos na última década.

Por fim, o cenário “Obedeça e Prospere”, no qual empresas e governos se articulam para impor a remuneração do capital e do controle político sobre as populações. Lembrando a célebre frase “o futuro já está aqui, só não está igualmente distribuído” (Willian Gibson, autor de Neuromancer), parece mais ou menos o que já acontece na China, mas ampliado para escalas regionais. A coleta de dados, possível em um mundo de vigilância constante, se torna uma importante fonte de vantagem competitiva para empresas que tiverem acesso a eles, mas isso, provavelmente, exigirá relações privilegiadas com agentes governamentais. A interferência política sobre a disseminação do conteúdo se combina com os interesses econômicos de cada corporação, aumentando o valor de conteúdo emocional e de valores de marca que enfatizem a obediência e a padronização. Do ponto de vista da criatividade publicitária, é provavelmente o cenário mais “careta” de todos.

Cada um desses cenários tem impactos diferentes para cada marca e um bom exercício para este final de ano pode ser pensar em construir em 2020 alguns indicadores para monitorar sua evolução. O ponto em comum é a crescente tensão que viveremos até que uma das três possibilidades se torne hegemônica e, nesse aspecto, faço relação com outro tema que já mencionei aqui: a demanda crescente para que as marcas se “posicionem” em questões de crenças e valores.

O que estamos vendo em Hong Kong, Chile, Catalunha e Bolívia é o crescente enfraquecimento dos sistemas de poder através de plataformas tecnológicas que operam em velocidades incompatíveis com as estruturas tradicionais de comando e controle. Os governos já estão alarmados (basta ver os chamados para discutir a “soberania digital” da Europa, feitos recentemente por Angela Merkel e Emmanuel Macron), e será questão de pouco tempo para que o debate sobre a regulamentação de toda forma de publicidade digital (ou dos sistemas de coleta e análise de dados que tornam ela possível) ameace a viabilidade de diversos modelos de negócio que floresceram nos últimos anos. Neste momento, organizações e marcas com boas histórias para contar, a confiança dos consumidores e alguma folga de caixa, até que um dos cenários se defina, serão provavelmente o principal seguro de que sua empresa pode dispor. Mais até do que o simples “domínio” das ferramentas tecnológicas.

*Crédito da foto no topo: Vijay Kumar/iStock

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