Transformação em público
Ao descer do pedestal do quase monopólio da TV brasileira para entrar na inóspita arena global de media tech, a Globo precisou aprender a jogar sob novas regras
Ao descer do pedestal do quase monopólio da TV brasileira para entrar na inóspita arena global de media tech, a Globo precisou aprender a jogar sob novas regras
Processos de transformação digital, quando vão além dos discursos e, de fato, mudam estruturas, são dolorosos. Demandam muita disposição, foco e energia, desde o olhar crítico e estratégico da liderança até os desconfortáveis cortes de pessoas e mudanças de processos enraizados.
O avanço tecnológico e a consequente mudança no comportamento de consumo obrigaram inúmeras empresas a percorrerem esse caminho nos últimos anos, em trajetórias geralmente não lineares e de duração e intensidade muito distintas. No mercado brasileiro, talvez o processo mais visível seja o da Globo.
Ela não é apenas a marca de comunicação que produz o conteúdo jornalístico e de entretenimento de maior alcance no País, mas também a empresa sobre a qual mais se fala na mídia não controlada por ela. Além disso, nas últimas décadas, foi muito criticada por governos de direita e de esquerda. Ao despertar paixões polarizadas no campo político e emoções variadas no público, convive com a dicotomia de ser vidraça e vitrine o tempo todo.
Desde 2017, a responsabilidade por conduzir a transformação digital da empresa está nas mãos de Jorge Nóbrega, presidente executivo da Globo, presidente do Grupo Globo e membro do conselho de administração da holding, além de ser o primeiro executivo de fora da família Marinho na liderança. Aparentemente sereno com o presente e entusiasmado com o futuro, Nóbrega falou à reportagem de Meio & Mensagem na semana passada, via videoconferência, dias antes da divulgação oficial do balanço financeiro de 2020, feito na sexta-feira, 26.
Os números principais denotam o tamanho do desafio. A Globo faturou R$ 12,5 bilhões (menos 11% em relação ao ano anterior), teve lucro líquido de R$ 168 milhões (queda de 78%, motivada sobretudo pela desvalorização do real) e Ebitda de R$ 688 milhões (menos 26%), com margem de 6% (ante os 7% de 2019). Por outro lado, investiu R$ 4,5 bilhões em conteúdo, R$ 1 bilhão em tecnologia, fechou o ano com R$ 13,5 bilhões em caixa (alta de 30%) e dívidas de R$ 5,4 bilhões. Do total em caixa, R$ 10,9 bilhões são títulos e valores mobiliários.
A composição da receita de R$ 12,5 bilhões da Globo é de 60% (R$ 7,5 bilhões) de publicidade e 40% (R$ 5 bilhões) de conteúdo — dinheiro gerado pela venda de assinaturas e repasse de programação a outros players, que se manteve estável em relação a 2019. Um dos principais problemas para a empresa — e também para outros atores do mercado — é a queda no faturamento publicitário. Na Globo, a perda foi de 17% em 2020, um índice próximo ao recrudescimento de 19% na compra de mídia feita pelas 217 agências monitoradas pelo Cenp-Meios — considerando apenas a TV aberta, a queda no levantamento do mercado foi de 20%.
Na entrevista, publicada na edição semanal de Meio & Mensagem, Nóbrega descreve o processo que visa transformar a empresa em uma media tech direct to consumer (D2C). O objetivo é manter os negócios tradicionais, como a TV, saudáveis e capazes de gerarem recursos para os investimentos em novos negócios digitais. Mas a caminhada inclui enxugamento de pessoal, que variou de 10% a 30%, dependendo da área (embora o hub digital tenha crescido e esteja hoje com 300 vagas em aberto). E, mais difícil ainda, uma mudança cultural que o presidente descreve sem tergiversar: “Não dá para ser uma empresa cheia de feudos, prepotente, que não ouve, não fala e não se ajusta às mudanças que o consumidor e o mercado querem. Não dá para não ser uma empresa flexível”.
Outro ponto crucial da transformação é o Globoplay, que puxa a estratégia marketplace da companhia e é a base de suas ofertas digitais. Na contramão de outras áreas, o Globoplay aumentou sua receita em 112% e seu total de assinantes em cerca de 80% em 2020. O alicerce dos planos futuros está no Globo ID, o registro de dados primários de 100 milhões de pessoas, capazes de nortear a criação de produtos na área de publicidade e a oferta de conteúdo na TV 3.0, que, impulsionada pela banda larga, viabilizará abordagem direcionada e individual.
Ao descer do pedestal do quase monopólio da TV brasileira para entrar na inóspita arena global de media tech, a Globo precisou aprender a jogar sob novas regras e a encontrar um campo aparentemente seguro para seus movimentos, que é o da produção para a distribuição multiplataforma. “Não gosto de comparar com Netflix ou Disney, porque não temos o tamanho e nem o dinheiro deles. Não vamos jogar o jogo deles”, diz Nóbrega, técnico de um time de 14 mil funcionários.
*Crédito da foto no topo: Oleg Magni/Pexels
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