Tudo certinho
A espécie humana é apaixonada por muitas coisas, mas nada parece nos encantar mais do que os extremos
A espécie humana é apaixonada por muitas coisas, mas nada parece nos encantar mais do que os extremos
Garçom de churrascaria rodízio não é, propriamente, a melhor profissão do mundo. Mas, como a perfeita metáfora de que mesmo as piores coisas podem piorar um pouco mais, existe o cara que carrega o cupim. Observe, amigo leitor: o garçom que serve o cupim tem uma vida absolutamente miserável. Perto dele, o camarada do carrinho de salmão defumado é um autêntico dândi dos rodízios, um Luís XV do bufê de saladas. O cupim, além de ter o peso equivalente ao de um bezerro bem alimentado, não é conduzido até as mesas num carrinho. Vem mesmo no espeto, pingando mais do que bucha de balão. E o pobre-diabo que o carrega, além de ter que sustentar a pesada peça com uma só mão (já que a outra segura o facão e o indefectível pratinho aparador de pingos de banha), precisa conviver com os agressivos olhares dos comensais. Estes encaram a peça que o trêmulo e suado sujeito exibe num misto de nojo e espanto, visto que o cupim, na prática um grande naco de sebo, é sabidamente a carne mais detestada do churrasco. E, como quase ninguém come o abjeto repasto, o espeto do infeliz garçom continua pesado até o final da noite.
A moral da fábula — chamemos assim — do cupim de churrascaria encontra sua aplicação sociológica como um alerta aos que acreditam que já batemos no fundo do poço no que se refere ao radicalismo de pensamento dos últimos tempos: o que está ruim sempre pode piorar. Mesmo eu, que sou um incurável otimista, acredito que as coisas ainda vão piorar um pouquinho antes de começarem a melhorar. Apenas torço para que esse pouquinho seja assim mesmo, no diminutivo. O fato é que a grande questão dos tempos de hoje, nos quais lacradores de direita disputam a primazia da verdade com os lacradores de esquerda, fazendo com que todos os que estão entre os dois extremos precisem ser igualmente lacradores, é a grande zona cinzenta dos valores, a ponto de muita gente boa tomar o Mal por Bem e vice-e-versa.
A Segunda Guerra Mundial talvez tenha sido o último conflito no qual o Bem o Mal eram claramente diferenciados. Após a vitória dos Aliados, se difundiu pelo mundo uma espécie de regra para as histórias de ficção: qualquer que fosse o enredo, o final teria que ser escancaradamente feliz. No cinema, a regra dos finais felizes foi levada às últimas consequências. Entre a segunda metade dos anos 1940 e o início dos anos 1960, filme bom era o que tinha muito sofrimento no meio, mas lágrimas de emoção, música de violinos e beijos apaixonados no final. Se o final não fosse feliz, o filme não prestava. José Werneck Franco, meu avô materno, era um admirador desses enredos otimistas. Mesmo quando ele não conseguia acompanhar o desenrolar da história de um filme, prestava atenção no desfecho, para conferir se as coisas terminavam bem. Quando o mocinho prendia o bandido, beijava a mocinha sob o pôr-do-sol e coros grandiosos invadiam a sala, vovô suspirava baixinho, num misto de satisfação e ironia, e dizia: “Tudo certinho…”
Os anos 1960 chegaram para mostrar que o Bem e o Mal não eram mais tão distinguíveis e, desde então, os filmes com final feliz escassearam substancialmente. Chique, agora (e esse “agora” já tem uns bons 20 anos), é o herói ser meio bandido, ou o bandido ser meio herói, sabe-se lá. Se uma história tem final feliz é imediatamente tachada de previsível, tola ou brega. Fiel às tradições de meu avô, tenho grande afeição por finais felizes — ainda mais nestes tempos de desfechos tristonhos para o planeta e para a sociedade. E é exatamente por isso que torço para que esse processo maluco de radicalização seja um decantador de lideranças verdadeiramente renovadoras e alinhadas com o progresso. Porque, como disse Winston Churchill em um discurso à Câmara dos Comuns, que se tornou célebre com o passar dos anos, “a democracia é a pior forma de governo, salvo todas as demais formas que têm sido experimentadas de tempos em tempos”. E é na democracia — e só nela — que eu continuo acreditando.
A espécie humana é apaixonada por muitas coisas, mas nada parece nos encantar mais do que os extremos. Uma pessoa que não opta por um extremo é logo acusada de sofrer de falta de personalidade, de ficar em cima do muro. E assim a vida segue: ou somos radicais de esquerda ou de direita, extremamente liberais ou tremendamente conservadores, amamos uma coisa ou simplesmente a odiamos. Preto ou branco, cinza jamais — muito embora, felizmente, eu não conheça ninguém que seja tão extremista na prática quanto no discurso. Parece que a gente não consegue mais viver sem inimigos. Há até alguns aforismos canalhas para justificar a inimizade como um ato de amizade, como aquele que diz que “o inimigo do meu inimigo é meu amigo”. Trata-se de uma maneira simplista e mesquinha de se enxergar o mundo, uma vez que bom mesmo é que não tenhamos inimigos, pois há coisas bem mais importantes na vida do que administrar invejas, ressentimentos e outros que nos matam antes do tempo.
Há muitos anos, quando esteve ciscando pelo Brasil para fugir do rigoroso inverno portenho, o grande e saudoso escritor argentino Adolfo Bioy Casares se aventurou por alguns dos nossos programas televisivos de entrevistas. Num deles, perguntado sobre o porquê de tanta rivalidade entre Brasil e Argentina, respondeu que isso é muito natural. Que nós, seres humanos, somos assim mesmo. Preferimos odiar sempre quem está próximo. Não brigamos com a sogra do nosso amigo, mas com a nossa. Da mesma forma, nas empresas, os engravatados brigam bastante com os concorrentes, mas brigam ainda mais entre eles mesmos. É o ancestral conceito do inimigo íntimo.
Concordo com Casares. Realmente, fora um ou outro modelo de vestido da Björk, jamais nutri grandes antipatias pelos islandeses. Também não chego a ter particular implicância com os times de futebol de Burkina Faso ou do Uzbequistão. Mas botem uma bola de futebol para rolar na grama e uns cabeludos com camisa celeste e branca do outro lado e, creiam-me, vocês conhecerão o lado mais sinistro da alma deste colunista. Sem as brigas com os vizinhos, nosso futebol não teria a mesma graça. O mesmo vale para qualquer tipo de rivalidade inteligente, respeitosa e, no fundo, cercada de admiração e talvez até afeto. Uma vez dito isso, já me apresso em corrigir a primeira oração deste parágrafo: concordo com Casares — apesar de ele ser argentino (alerta de ironia, pois morei na Argentina e sou apaixonado pelo país).
O que espero, de verdade, é que essa inimizade toda que vemos ser destilada nas redes sociais — em especial no Twitter, que parece ser o último círculo do inferno, a terra sem lei onde pode absolutamente tudo quando o assunto é odiar o próprio —, não passe de um desdobramento novo e tecnológico do conceito do Casares. Espero que, quando todos nos dermos conta de que os problemas do mundo são sistêmicos, indo muito além de questões de nomes, preferências políticas e cores de bandeiras, sejamos capazes aplicar a energia que consumimos bestamente nos últimos tempos para tretar com pessoas que não são assim tão diferentes de nós em prol de algo construtivo e transformador. E que, no final do processo, possamos dizer como o meu avô: “Tudo certinho”.
*Crédito da foto no topo: Vedanti/Pexels
Compartilhe
Veja também