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Opinião

Um vírus sem vacina?

A ignorância funcional agora é somada ao exercício (desmedido) do direito de livre expressão


26 de maio de 2020 - 11h16

(Crédito: Sesame/ iStock)

Em tempos de inflamação nas redes sociais e popularidade dos programas de debate no jornalismo televisivo, tem sido difícil navegar pela internet. Não que fosse diferente num passado recente e diante da fragilidade educacional a que a grande maioria das pessoas, infelizmente, foi submetida, mas há um novo ingrediente nesse fenômeno: a ignorância funcional agora é somada ao exercício (desmedido) do direito de livre expressão.

Aparentemente, é como se, num passe de mágica, um indivíduo, que não detém a habilidade de fazer as quatro operações de matemática, acreditasse ser capaz de se manifestar com fluência sobre as diferentes formas de resolver uma equação de terceiro grau. A suposta legitimidade de tal postura vem sustentada no “direito de ter e dar minha opinião”. Essa nova característica cultural se multiplica como coronavírus pelos meios digitais e o atrevimento de abordar esse fenômeno já me gera riscos imediatos de ser taxado de elitista, censor, antidemocrático ou o mais popular “dono da verdade” — outra expressão recorrente do novo mundo. Aviso estar consciente dessa potencial represália, pois presencio a olhos nus múltiplos exemplos que trilham esse desfecho como espectador de caixas de comentários na world wide web.

É óbvio e natural que o ser humano tem o direito inalienável de defender ideias, inclusive, a respeito de temas sobre os quais estejam completamente desinformados ou em posse de informações meramente aleatórias, rasas, sem fonte, sem nenhum tipo de apuração ou evidência. O ponto é que essa postura egoísta elimina a premissa essencial de qualquer discussão: a construção de conhecimento, e não o palco de uma disputa. Precisamos resgatar a gênese de todo esse caos: as pessoas não sabem que opinião não é argumento. Opinião é um conjunto de crenças pessoais, construídas a partir de percepções subjetivas. Já argumento é uma construção lógica suportada por fatos e dados. Parece professoral insistir nessa diferença, mas o dano dessa falta de compreensão é devastador porque isso prejudica a qualidade das discussões travadas.

Tenho tido o privilégio de conviver com matizes mais heterogêneas de formação, colegas de trabalho europeus ou brasileiros que viveram mais tempo fora do País com influências muito mais orientais que ocidentais. Pude perceber todas as minhas fragilidades como um bom brasileiro, porque, apesar de, em dado momento, eu ter aprendido a discernir entre argumento e opinião, logo percebi que isso, por si só, se tornava insuficiente e obsoleto para desempenhar bem meu papel profissional.

Aprendi e recomendo para todos procurar conhecer mais sobre o princípio de caridade, uma abordagem da compreensão das falas. Sua formulação mais simples pode ser apresentada como “interprete os outros como gostaria de ser interpretado”. De forma completa, é um princípio lógico que exige que, diante de uma informação com mais de uma interpretação, devemos escolher a mais benéfica. Isso permite que você fuja da tentação de ficar procurando falácias e se concentre no tópico principal (ou você quer ser aquele dito cujo que corrige o português, mas não fala nada sobre o argumento como tentativa de ganhar a discussão desmoralizando o interlocutor?). Em outras palavras, o princípio da caridade impõe que interpretemos as afirmações dos outros de forma a maximizar a verdade ou racionalidade do adversário, tanto quanto isso seja possível. É a maneira mais respeitosa e produtiva de manter uma discussão honesta.

Muitas vezes esquecemos que, antes de profissionais de marketing, somos profissionais de comunicação. Muitas vezes, aprender a agir conforme os ensinamentos de Willard van Orman Quine (*) pode ser mais relevante e útil que qualquer outra capacitação tecnológica sazonal em que empenhamos tempo e babação de ovo.

Mas fica apenas um último conselho ibérico: não espere de ninguém a reciprocidade na caridade, tenha a humildade de ser genuinamente caridoso sem esperar nada em troca em prol do coletivo e de um futuro mais promissor para os debates que seus filhos e netos vão travar no nosso país.

(*) Filósofo, é um dos precursores do princípio de caridade e/ou acomodação racional

*Crédito da foto no topo: Brandi Redd/ Unsplash

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