Uma gota de suor de Freddie Mercury
A vida é feita de momentos e só alguns serão mágicos, embora muitas vezes a gente só perceba tempos depois
A vida é feita de momentos e só alguns serão mágicos, embora muitas vezes a gente só perceba tempos depois
28 de novembro de 2018 - 10h25
Nelson Rodrigues dizia que o ser humano nada mais é do que a soma de suas obsessões. Quem sou eu para discordar do mestre, e digo mais: cultivo uma razoável coleção de obsessões. Nenhuma delas é particularmente exótica ou digna de internação, mas elas variam entre pequenas coisas — como apagar todas as mensagens de todas as conversas por WhatsApp — e grandes coisas, como sentir enorme pavor de perder um momento que, mais tarde, poderá ser percebido como histórico. Esse medo absoluto de perder o trem da história fez com que eu marcasse presença em todas as grandes manifestações políticas do País, do distante comício das Diretas Já, na Candelária, até o Fora Collor, na Cinelândia. Em 2013, eu estava em casa assistindo ao Jornal Nacional quando vi o monte de gente que foi às ruas para lutar contra o aumento de 20 centavos nas passagens de ônibus em São Paulo. Falei para a minha mulher: “Pega lá um casaco e vamos encontrar esse povo na Faria Lima. Isso vai ser grande.” Companheira como sempre, a Alê não apenas topou como incentivou. Não me lembro bem de como acabou aquele dia de manifestações que colocou algo em marcha no Brasil. O que não esqueço mesmo é de um longo beijo que trocamos no alto da Ponte Estaiada.
A vida é assim, feita de momentos, dos quais apenas alguns serão mágicos — embora na maioria das vezes a gente só perceba sua magia muito tempo depois. É por isso que prefiro não arriscar: seja uma Copa do Mundo, seja um comício, seja a abertura dos Jogos Olímpicos, seja um evento importante, toda vez que farejo no ar o risco de perder algo sobre o qual as futuras gerações falarão a respeito, dou um jeito de ser testemunha ocular da história, para usar o slogan do falecido Repórter Esso. Não por acaso, vi no estádio todas as decisões de campeonato que o meu amado Fluminense disputou, desde o longínquo ano de 1973. Se o capitão do meu time ergueu alguma taça nos últimos 45 anos, podem ter certeza: eu estava no estádio.
É assim que finalmente chegamos a Freddie Mercury, que aparece no título da coluna e no ótimo filme Bohemian Rhapsody, ainda em cartaz nos cinemas. Fiz esse preâmbulo para dizer que, graças à minha obsessão de estar sempre bem perto da história, é evidente que eu não poderia ter deixado passar a chance de ir ao primeiro — e, para muitos, o verdadeiro e único — Rock in Rio. Eu já havia perdido a oportunidade de ver o Queen em São Paulo, em 1981. Eu tinha 15 anos, minha mãe nunca foi muito liberal e, naquele tempo, entrar em vários ônibus para ir de Madureira ao Morumbi seria algo comparável ao alistamento em uma missão espacial. A frustração de não ver o show paulista, sendo que a segunda noite ainda coincidia com o meu aniversário, foi uma ferida difícil de cicatrizar. O Rock in Rio seria a minha chance de redenção. E foi.
Na sexta-feira, dia 18 janeiro de 1985, já com gloriosos e independentes 19 anos, eu deixei o trabalho no Campo de São Cristóvão, no final do expediente (eu estava fazendo auditoria no Centro de Contabilidade da Souza Cruz) e parti para a célebre Cidade do Rock. Recordo que fiz quase tantas baldeações de ônibus quantas seriam necessárias para chegar ao Morumbi. Depois de duas horas de asfalto e uma interminável caminhada, pisei na lama sagrada quando já acontecia o show do performático Eduardo Dusek. Eu tinha perdido o Kid Abelha, mas tudo bem. Já tinha no currículo um monte de apresentações da banda, como também do Lulu Santos, que entrou mais tarde. Terminado o show do Lulu — e me recordo de que todos os brasileiros botaram pra quebrar, já que estavam no auge da forma e o chamado B Rock era a música que unia o País —, chegou a vez das atrações internacionais. Primeiro, as divertidas Gogo’s, uma banda de rock feminina, também fazendo história. Em seguida, os estouradíssimos B-52’s botaram a galera para dançar, mas eu já nem estava prestando muita atenção. Meu objetivo, naquele momento, era encontrar uma forma de chegar à beira do palco para ver o Queen. Convenci os amigos que me acompanhavam a abandonar os passinhos de new wave para empreender a jornada épica de singrar a multidão de 280 mil pessoas até um dos lados do palco, aquele do qual, eu já sabia, Freddie Mercury se dependuraria para interagir com a multidão.
Nunca, jamais percam a chance de fazer parte das coisas que ficarão para sempre, seja um título sem importância do seu time do coração, uma tarde de brincadeiras com os filhos ou o maior show de uma das maiores bandas de todos os tempos
Nenhum dos meus amigos concluiu a travessia. Alguns desistiram, outros se perderam, outros foram parar na área de alimentação, vítimas de uma espécie de correnteza de gente. Eu consegui completar a jornada, mas paguei um preço. Não havia espaço para ficar no bololô de gente da frente, o que me forçou a ficar numa espécie de ponto cego entre a multidão e a beira do palco. Eu não vi praticamente nada da banda. Tudo o que eu conseguia enxergar era o Freddie e, mesmo assim, quando ele cantava de pé. Ao piano, nem pensar. Portanto, quando vocês ouvirem aquele lindo coro de Love of my Life no filme, saibam que a minha era uma daquelas milhares de vozes, mas, ao contrário de quase todos, eu cantava sem ver nada além de tapumes negros e feias estruturas tubulares — ao menos até o meu ídolo vir para a beira do palco.
O filme adotou algumas licenças poéticas, como mostrar o Rock in Rio como um evento do final dos anos 1970, no qual Freddie ainda não ostentava o célebre bigodão. Mas eu garanto: ele estava de bigode, calça branca com raios negros, faixa vermelha na cintura, munhequeiras vermelhas e sem camisa. Apesar da liberdade cronológica, o filme de Bryan Singer — com performance mediúnica de Rami Malik — conseguiu capturar a essência da figura mercurial (com trocadilho) do líder da banda. Um inglês que também era persa, pansexual, zoroastrista, designer, compositor, exímio vocalista e, depois daquela noite, um pouco brasileiro também.
A gota de suor? Deixei pro fim, claro, da mesma maneira que o Queen gostava de deixar para o fim o seu grande hino, We Are the Champions. Aconteceu assim: quando Freddie veio até a beira do palco para cantar o trecho final de Love of my Life, gotas de suor escorriam de seus braços, enquanto os agitava para reger a multidão. E uma delas caiu no meu rosto. Uma das coisas boas sobre a passagem do tempo é termos mais histórias para contar. E, se há uma vantagem em envelhecer, é poder falar para os mais jovens de experiências que vivemos e que eles jamais poderão repetir, pois, como cantava George Harrison, “all things must pass”. De forma que eu posso encerrar a crônica de hoje com dois sentimentos. O primeiro é o orgulho (metidez, para dizer a verdade) de poder dizer que não apenas vi o Queen ao vivo, mas também que o fiz de tão de perto que uma gota de suor do Freddie Mercury chegou a cair no meu rosto. O segundo é desejo de deixar um recado para os que chegaram até aqui: nunca, jamais percam a chance de fazer parte das coisas que ficarão para sempre, seja um título sem importância do seu time do coração, uma tarde de brincadeiras com os filhos ou o maior show de uma das maiores bandas de todos os tempos.
Ao final do filme, uma lágrima solitária escorreu da minha face. Fiquei pensando se não teria sido a lágrima do meu herói, devolvida com respeito e gratidão, na situação apropriada e no tempo certo: o tempo da chegada da maturidade.
*Crédito da foto no topo: Edward Eyer/Pexels
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