Vou sim atrapalhar a sua festa
Meu ponto aqui não é uma competição com os homens, mas, sim, mostrar que quando investimos e desenvolvemos as mulheres, mais a gente ganha como time
Meu ponto aqui não é uma competição com os homens, mas, sim, mostrar que quando investimos e desenvolvemos as mulheres, mais a gente ganha como time
Escrevo este artigo completamente tomada pelo espírito olímpico, acordando bem cedo para assistir sete esportes ao mesmo tempo no modo tela tripla: celular, computador, TV. Estou feliz que serão muitos jogos para torcer pelo Brasil até dia 8 de setembro. Por ora, ainda vivendo a alegria da medalha de ouro da Beatriz Souza no judô, o ouro da Rebeca Andrade no solo da ginástica artística, a prata do Caio Bonfim na marcha atlética e tantas outras performances incríveis que já tivemos. Na expectativa do ouro no futebol e juntando pessoas para abrir a “CPI do tempo extra”. Feliz por ter conhecido a Ana Sátila, detentora dos braços mais resistentes e os melhores memes. Aliás, se existisse Olimpíada de memes, não ia ter para ninguém. Somos bem bons de memes, mas nem tão bons em conversa séria. Sempre observo como temas importantes que surgem em grandes momentos midiáticos como este causam uma sensação, em muitas pessoas, de estar “atrapalhando a festa”. “Por que tudo tem que ser sério?”. O porquê rápido: desinformação não nos leva a nenhuma transformação. O porquê longo, eu vou dividir aqui algumas informações e reflexões, mas já adianto: vá estudar.
A edição de 2024 prometeu ser a primeira com paridade numérica entre homens e mulheres. A de Tóquio 2020 foi a que chegou mais perto. A primeira, em Atenas 1896, teve um total de zero mulheres. A participação feminina somente foi permitida nos Jogos Olímpicos a partir da edição de 1900, em Paris. Sim, permitida. Antes, o esporte era considerado uma atividade masculina, e havia uma crença comum de que a participação em competições atléticas poderia comprometer a feminilidade e a moralidade das mulheres. O Barão Pierre de Coubertin, um dos cofundadores do Comite Olímpico Internacional (COI), em 1894, expressou abertamente sua oposição à participação feminina nas competições. Hoje, se você for ler sobre isso no site das Olimpíadas, justificam essa oposição com o contexto de uma sociedade paternalista em que ele foi criado, com códigos de cavalheirismo nos quais proteger a dignidade das mulheres era uma prioridade alta da sua lista e, portanto, esse o motivo de sua oposição. Veja só, no fundo ele estava pensando no bem das mulheres. Deve ser muito bom ter pessoas que te defendem para além da vida. De Paris 1900 a Paris 2024 foram 29 edições, 124 anos. Entende por que a gente precisa conversar sobre isso? E, para os brasileiros, eu adiciono ainda mais informação. A gente deveria era acelerar além da paridade, a equidade no esporte. A primeira mulher brasileira a participar dos Jogos Olímpicos foi a nadadora Maria Lenk, em Los Angeles 1932, mas as primeiras medalhas femininas só chegaram em Atlanta 1996, e foram 4: ouro e prata no vôlei de praia, prata no basquete, e bronze no voleibol. Desde então, o número só cresce, tanto de mulheres quanto de medalhas conquistadas pelo Brasil. Quanto mais mulheres, mais medalhas. Meu ponto aqui não é uma competição com os homens, mas, sim, mostrar que quando investimos e desenvolvemos as mulheres, mais a gente ganha como time. 2024 já nos mostra que ficará para a história. Por isso, a gente tem que conversar sobre isso.
Agora vamos dar um duplo clique carpado nessa conversa. A primeira medalha de ouro do Brasil desta edição foi da Beatriz Souza, uma mulher negra. A segunda medalha de ouro foi da Rebeca Andrade, uma mulher negra, que foi conquistada em um pódio com três mulheres negras, três potências da ginástica. E o que não faltou foram pessoas brancas perguntando “qual a necessidade de falar da cor das pessoas?”. Há muita necessidade, vamos lá.
O espaço esportivo sempre foi racializado. A questão da exclusão de atletas negros em muitos esportes, incluindo a ginástica artística, tem raízes profundas em preconceitos raciais. Por exemplo, a ideia de que atletas negros não eram adequados para certos esportes, como a ginástica artística, muitas vezes se baseava em concepções erradas (racismo) sobre a biologia e a “adequação” física. Um desses estereótipos específicos era a ideia de que os corpos negros tinham “ossos mais pesados” ou eram menos ágeis, o que era usado para justificar a sua exclusão de esportes que exigem flexibilidade e elementos de leveza e que eram considerados mais adequados para atletas brancos (racismo). A falta de representatividade gerou falta de incentivo, falta de desenvolvimento de talentos e, por consequência, uma forma de manutenção da justificativa do critério de adequação ou habilidade (racismo).
Não deveria nem precisar explicar, mas vou, que argumentações como “ossos pesados” não são apenas racistas, mas também cientificamente infundadas. Qualquer esporte depende de uma combinação de genética, treinamento, técnica, dedicação e oportunidade. Na ginástica, a performance e sucesso de atletas como Dominique Dawes, a “Awesome Dawesome”, que se destacou nas Olimpíadas de Atlanta 1996, ajudou a abrir portas e aumentar a visibilidade de outros atletas negros nesse e em outros esportes tradicionalmente dominados por brancos. Engana-se quem acha que tudo isso ficou no passado e, hoje, a história é totalmente diferente. Vou trazer aqui um trecho do que li no Instagram da Pretitudes: “As histórias da Rebeca, Biles e tantas outras são marcadas pela raça. Por países que empobrecem a população negra, que não dão oportunidades e, como Viola Davis já falou, o que separa mulheres negras do sucesso é a oportunidade”. Sim, precisamos falar também de coisas sérias, ainda mais em momentos como este. É possível gostar de meme e aprender ao mesmo tempo. Falar sobre a importância de mulheres e mulheres negras no esporte não é “atrapalhar a festa” de ninguém. Só acha isso quem desconhece o histórico de desigualdade e o contexto em que vivemos e, na minha festa, essa é a turma que atrapalha.
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