Washington é gol do Vasco
E gols históricos, com o passar do tempo, deixam de ter time, viram patrimônio da humanidade
E gols históricos, com o passar do tempo, deixam de ter time, viram patrimônio da humanidade
Quantas coisas boas eu poderia comparar ao Washington?
Poderia ser um dry martini ao fim da tarde no Cipriani de Nova York. Poderia ser um cello do Mstislav Rostropovich para um arranjo de Cole Porter. Poderia ser a saudosa coalhada que minha avó fazia todos os dias para o meu avô. Com tapioca. Poderia ser um topless em Saint-Tropez, uma zabumba nordestina, qualquer clássico do Shakespeare.
Mas, por que compará-lo a tão pouco se neste universo de Deus há ainda coisa mais única, mais exclusiva e mais estrepitosamente espetacular? Como o quê? Oras, como o quê? Como um gol do Vasco, evidentemente.
Mas, alto lá! É de Washington que estamos aqui falando. Então nem gol, assim no singular, do Vasco bastaria. Ainda que fosse o mais lindo entre todos os gols registrados, gravados, relatados, mistificados, incluindo os imaginariamente criados: o de Roberto Dinamite, com seu sutil lençol despenteando as madeixas de sua vítima, o zagueiro botafoguense Osmar.
Não, para Washington isso ainda seria injusta metáfora: ele é mais que só isso. Washington não é um. Washington é goleada.
Então lá vai minha contribuição. Se Washington fosse um gol do Vasco, seria cinco gols do Vasco. Casualmente, também do Dinamite. Casualmente, também contra um alvinegro – mas não do meu Rio. Casualmente, todos os cinco gols em um mesmo jogo, no mesmo histórico dia em que meu outro ídolo – o do futebol – voltava a jogar pelo Vasco depois de breve e brasileiramente tristonha passagem pelo Barcelona, da Espanha.
Naquele dia eu, um garoto apaixonado por futebol, um pouco menos do que um dia seria pela propaganda e pelo que o Washington fez por ela, chorei copiosamente de emoção.
Não se chutam seis bolas acertando uma na trave e cinco dentro do gol, em voltas de Barcelonas todos os dias. Eu sabia disso. Assim como sabia que nunca mais veria e sentiria algo assim de novo.
Só não sabia, ignorante que era naquele tempo, que do outro lado da torcida, havia alguém, especial como aqueles gols, a sofrer. Muito. Porque só sei que sofrimentos e alegrias são sentimentos que ficam lá, num pote gigante, no meio do nada. E quando alguém se serve muito de algum, dá-se a dose inversamente proporcional a outro. Então, naquele dia, certamente, Washington sofreu o mesmo tanto que eu flutuei de felicidade.
Mas, a vida é assim, uma Skol. Dá voltas, porque o mundo é redondo. Numa dessas voltas, um dia encontrei Washington. Em dias ainda melhores virei um imenso amigo dele. E aqui estou para devolver esses gols para o Washington. Um a um, eles não são mais meus, nem tampouco do Dinamite.
Até porque gols históricos, antológicos, com o passar do tempo, deixam de ter time. Viram patrimônio da humanidade. Exatamente como os feitos, o trabalho, o próprio Washington.
O Washington que não é da DPZ, que não é da W, nem muito menos da McCann.
É nosso, é um pouco meu, é de todos nós. Um cracaço. Como não se faz mais por aí.
*Extraído do livro de medidas imensas, desses que só se podem folhear apoiados sobre uma mesa; lindo, de produção gráfica espetacular, de exemplar único, oferecido de presente pelos 65 anos do Washington e escrito ou ilustrado por 108 amigos – por isso chamado W108. Meu texto está na página 29. Em dezembro do ano passado, na última vez em que estivemos no apartamento do Washington e da Patrícia, no Rio, depois de mais um dos nossos divertidos e intermináveis almoços no Satyricon, fiz questão de fotografá-lo. Sei lá porquê.
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