A pandemia matou a criatividade?
A convicção é talvez a maior fonte de energia criativa e resiliência que existe e acho que nunca houve tanta necessidade dessas qualidades quanto nesse momento histórico.
A convicção é talvez a maior fonte de energia criativa e resiliência que existe e acho que nunca houve tanta necessidade dessas qualidades quanto nesse momento histórico.
2 de março de 2023 - 15h17
Dentro da nossa bolha de trabalho, fala-se de uma “crise criativa”. Uma matéria da Advertising Age (“Como a pandemia destruiu a criatividade” – livre tradução) tenta resumir: “(…) Os fatores causadores incluem uma mudança nas prioridades de marketing e orçamento, um ambiente baseado em projetos pontuais que erode a confiança, um cenário de mídia fragmentado que enterra boas idéias, a pressão por prazos de projeto cada vez mais curtos e uma fadiga geral por causa da pandemia (…)”.
Não acredito que seja por aí. Acredito que a crise começou bem antes da pandemia e se tornou mais evidente agora, como se a pandemia tivesse baixado o nível da água e agora pudéssemos ver melhor. Como se nossa pele tivesse ficado mais fina, mais sensível. A verdade é que estamos vivendo uma crise de propósito: pra que sair da cama todo dia pra fazer tudo sempre igual e chacoalhar às 6 horas da manhã se o mundo está à beira de um colapso climático, uma potencial terceira guerra mundial voltou a ser manchete de jornal pela primeira vez depois da queda do Muro de Berlin, as redes sociais têm feito adolescentes se matarem e pandemias e superbactérias seguem à espreita? Pior: se depois de tudo que vivemos coletivamente nesses últimos 3 anos, aparentemente não aprendemos nada como espécie – as emissões nunca foram tão altas, o luxo nunca cresceu tanto em meio à crescente desigualdade social e cada um continua tentando “garantir o seu”?
Me parece óbvio que pessoas inteligentes estejam travadas em algum lugar no meio do caminho entre o fim da pandemia e o sentido que o futuro parece (não) fazer. Imagine agora, pedir para tipos criativos criarem novas campanhas para carros, detergentes pra lavar roupas, cartões de crédito, cerveja, quando não é nada disso que o mundo precisa… A crise criativa é um sintoma – entre muitos – que aparece quando as coisas deixam de fazer sentido.
Pra viver bem (e criar bem) é preciso crer no valor do quê se tenta resolver. Crer que vale a pena sair da cama de manhã pra fazer sua parte na entrega de algo necessário. Crença, convicção mobilizadora. Quando você encontra a sua, você começa a entender os talentos que tem para contribuir; é simplesmente natural porque vem do desejo e da necessidade identificados. É nessa ordem que funciona: da convicção para os talentos, do “macro / externo / maior que você” pra “dentro, pro íntimo e pessoal”. É talento a serviço.
E aí você encontrou sua crença, o que te tira da cama de manhã em meio ao caos. Ainda não acabou – vc vai aplicar suas recém-encontradas energia criativa e resiliência de acordo com seu estilo e personalidade. Peço licença pra falar um pouco sobre isso usando uma história religiosa – católica. A história de São Paulo e São Pedro apóstolos. Ambos creram em Jesus – e muito – mas suas jornadas foram completamente diferentes e suas maneiras de se colocarem a serviço também. Pedro era Judeu e pescador. Paulo era Judeu mas também tinha a cidadania Romana – um privilégio na época. Paulo vinha de uma família de comerciantes e era estudioso de filosofia Grega.
Pedro era irmão de André, que já era apóstolo de Jesus quando Pedro o conheceu. Pedro ouviu Jesus pregar e o viu fazer milagres. Jesus, então, convidou-o pessoalmente para deixar tudo e segui-lo: “Pedro, deixe as redes e vem pescar almas!”. O que ele humildemente fez. Jesus, mais tarde, disse a ele: “Pedro, tu és pedra e sobre ti construirei a minha igreja”.
Paulo, por outro lado, nunca conheceu Jesus – anos depois da crucificação, ele, que tinha um compromisso de fé de salvar o Judaísmo da ameaça da “seita” de Jesus, teve uma visão na estrada de Damasco: uma luz forte fez seu cavalo empinar e jogá-lo no chão. Uma voz perguntou-lhe: “Paulo, Paulo…por que me persegues?”. Aí aconteceu sua conversão: de perseguidor de cristãos, Paulo transformou-se no maior evangelizador do cristianismo.
Ambos viveram seu sacerdócio e morreram como mártires, em nome da sua fé – da sua crença. E tiveram energia criativa e resiliência em abundância.
Mas – meu povo – os efeitos de ambos no mundo foram diferentes. Pedro foi um alicerce, uma referência – o primeiro papa. Pedro seguiu pregando muito tempo para a conversão dos Judeus. Pedro garantiu a continuidade. Mas foi Paulo, “o cristão mais improvável”, o traidor que perdeu amigos e família porque passou a representar tudo que eles mais temiam – que mais longe levou a igreja. Foi Paulo que, usando seus conhecimentos de culturas diferentes, levou o cristianismo especialmente para os não-Judeus e espalhou a fé como é hoje. Foi Paulo também que discutiu e, abertamente, colocou o colega Pedro na berlinda por não conseguir concordar com ele e não conseguir continuar trabalhando de um jeito que não concordasse. O apaixonado, o formador de comunidades, o incansável, o polêmico Paulo.
Acho que precisamos de mais Paulos – gente com convicção que gera energia criativa e resiliência, capaz de ação transformadora rápida e amplamente sentida através dos seus talentos, arranjando um jeito de pregar pra quem não quer ouvir e pagando preços pessoais.
Vamos deixar a crise criativa pra lá e encontrar o que nos move nesse nível de potência. É do que o mundo precisa. Sejamos mais como Paulo.
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