Carol Scorce e Carol Scorce
1 de junho de 2022 - 9h16
Por Carol Scorce
Em 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) alertou: no Brasil, mais de 40% das crianças indígenas estão anêmicas. O principal motivo é a escassez cada vez maior de animais silvestres no entorno das comunidades. Quanto mais pasto para criação do gado – que em algum momento chegará às prateleiras dos supermercados -, menos florestas e animais silvestres. E na mesa das populações da cidade, a carne desse gado de pastagem chega? Segundo levantamento da Rede Brasileira de Pesquisas em Segurança Alimentar e Nutricional, não chega. São 116,8 milhões de pessoas vivendo hoje sem acesso pleno e permanente a alimentos. Ou seja, quase metade da população brasileira está passando fome em algum nível.
Notícias como essas não são estranhas, mas estão cada vez mais naturalizadas como parte da maneira como vivemos. Uns comem, outros não. No relatório elaborado pelas plataformas de pesquisa e educação White Rabbit e Futuros Possíveis sobre Futuros Regenerativos, as pesquisadoras citam a já conhecida frase do autor Mark Fischer: é mais fácil imaginar o fim do mundo (ou o fim da vida) que o fim do capitalismo.
“Precisamos elaborar a criação de novos sistemas e práticas que sustentem a vida. O nosso modelo de vida hoje, calcado no individualismo, no consumo desenfreado e na retirada predatória de recursos da natureza é degenerativo. Nos condena ao fim”, afirma a comunicadora Lua Couto, fundadora da Futuros Possíveis.
Regeneração é um conceito relativamente novo. Em 2016, o biólogo e pensador Daniel Christian Wahl escreveu o livro Design de Culturas Regenerativas (publicado no Brasil em 2020 pela Bambual Editora), onde propõe práticas disruptivas com o modo de vida atual, devolvendo para o ecossistema mais do que retiramos dele.
Lua Couto: “O nosso modelo de vida hoje, calcado no individualismo, no consumo desenfreado e na retirada predatória de recursos da natureza é degenerativo” (Crédito: Arquivo pessoal)
No Brasil, a ideia tem ganhado força nos últimos anos e recebeu o interesse de um público maior a partir da pandemia, uma experiência concreta de fim que atravessou a todos como uma força avassaladora. Assim como Lua, Vanessa Mathias e Luciana Bazanella, sócias da White Rabbit, atuam como educadoras no tema, incluindo grandes empresas e organizações, que, em sua maioria, fixam formas de atuar em modelos de trabalho e negócios ainda muito calcados no acúmulo: de metas, de produção, de dinheiro.
Ao invés disso, nesses espaços elas levam temas como viver e trabalhar em colaboração, atentas às necessidades e virtudes de cada comunidade; desigualdade social, de raça, de gênero e como essas iniquidades são fabricadas hoje em dia. Mas falam, principalmente, sobre o poder de imaginar um futuro sem essas desigualdades, sem a degradação da natureza.
Segundo Luciana Bazanella e Vanessa Mathias, da White Rabbit, valorizar potencialidades de cada pessoa, lugar, território e cultura é questão central (Crédito: Divulgação)
“A Regeneração é uma visão profunda de que nós somos parte da natureza. Em culturas menos ocidentalizadas, como a dos indígenas, isso já é uma verdade. O rio é visto como um parente, então, nunca, em nenhuma hipótese, eles vão jogar lixo ou minério ali e com isso matá-lo. Nunca. É por isso que dizemos que a Regeneração não é só um método de fazer algumas coisas, os chamados métodos regenerativos, mas um modo de viver a vida”, explica a pesquisadora em arquitetura Anna Denardini.
Anna é formada em engenharia, e foi a partir de seu interesse por temas próximos da sustentabilidade que descobriu a Regeneração. Hoje, ela ajuda a formular ferramentas que possam ser úteis em projetos arquitetônicos regenerativos. “Não podemos pensar apenas que captar água da chuva resolve todos os nossos problemas, mas o impacto que cada processo, e no caso nas construções, causa no todo. Onde essa água vai ser usada, com quais materiais e que recursos serão necessários para esse equipamento, e por aí vai”, explica a pesquisadora.
Anna Denardini: “Há muitas pessoas falando sobre o futuro com uma perspectiva regenerativa” (Crédito: Divulgação)
A Natura é uma das empresas brasileiras que despontam no uso de mecanismos que privilegiam a integração com o ecossistema. A gigante global do setor cosmético acaba de lançar seu relatório Integrated Profit and Loss (IP&L), uma ferramenta relativamente nova e que complementa o tradicional P&L, usada para medir e reportar os impactos ambientais e sociais dos seus negócios.
Se todo negócio e produção de bens de consumo geram impactos para as populações e meio ambiente, é natural que esses impactos entrem na conta, isto é, que sejam expressos em valores. Mas na prática não é assim que a banda toca. Se um recurso natural é exaurido, a conta fica apenas para a comunidade, e muitas vezes ela sequer é mensurada. Na outra linha, a maior parte das empresas não planifica o ganho gerado por boas práticas para além dos muros das organizações. E se faz isso, faz levando em conta o recurso em si – rios recuperados, para citar um exemplo.
O IP&L possibilita que a empresa projete uma unidade de valor única de perdas e ganhos na sua interação com comunidades e natureza, e dessa forma se estabelecer como sustentável ou regenerativa no mercado junto a investidores, por exemplo, de modo mais transparente.
NARRATIVAS REGENERATIVAS E A ANCESTRALIDADE
Uma questão central para a Regeneração é a compressão, apontam as pesquisadoras, da importância em reconhecer e valorizar as potencialidades de cada pessoa, lugar, território e cultura. “É o que chamamos também de singularidade. Ou seja, quais são as histórias, os conhecimentos que cada um carrega e o que isso pode nos ensinar”, explica Vanessa.
Para nós, brasileiros, cidadãos latino-americanos, isso significa dar voz e protagonismo às ancestralidades, como a cultura africana, a cultura afro-brasileira, as culturas indígenas.
“Isso tem a ver com romper com esse pensamento moderno, ocidentalizado, branco. Há muitas pessoas, com trajetórias diversas, falando sobre o futuro com uma perspectiva regenerativa. A diferença é que cada povo e cultura tem o seu nome para isso”, afirma Anna.
Organizar essas narrativas – tão importante para oferecer à sociedade uma outra possibilidade de mundo (e de futuro) – não é tarefa fácil. Por isso, as pesquisadoras adotam uma visão decolonial para compor esse conhecimento. Ou seja, uma visão da Regeneração do Sul Global. “Não adianta querer aplicar métodos criados na Europa e nos Estados Unidos aqui porque nossa história, necessidades e potências são outras. Estamos fazendo isso há muito tempo e é preciso reconhecer que não funciona.
ELAS NA LIDERANÇA
Nem sempre as organizações e empresas sabem endereçar o tema quando pessoas como Lua, Vanessa e Luciana falam. Se esse modelo de vida é a máquina, as pessoas são a engrenagem permitindo a ela funcionar na sua integralidade. Mas há algumas pistas sobre como mudar a direção. Uma delas é colocar o bem-estar no centro das preocupações. Na SAP, multinacional da área de tecnologia, a saúde mental dos funcionários virou um programa específico dentro da empresa, e ganhou destaque em premiações do setor. A ideia foi liderada pela própria presidente da empresa no Brasil, Adriana Aroulho, mas construída em colaboração com a área de recursos humanos, diversidade & inclusão, marketing e comunicação.
“Se queremos um mundo sustentável, devemos olhar as sociedades em que operamos”, afirma Adriana Aroulho, da SAP (Crédito: Divulgação)
Além da capacitação de lideranças no tema da saúde mental e emocional, a empresa apostou numa ideia aparentemente simples: a escuta. E criou canais específicos onde é possível trocar (falar e ouvir) sobre temas como sobrecarga, maternidade, luto e propósitos de vida.
“Se queremos criar um mundo coeso e sustentável, devemos ser capazes de olhar em direção às sociedades e comunidades em que operamos. Entendemos que a maximização dos lucros e o aumento do valor para o acionista por si só não serão mais suficientes. Os comportamentos mudaram. Os consumidores e funcionários desejam apoiar e trabalhar para empresas com propósitos específicos”, afirma Adriana.
O FUTURO COMO CAMINHO
“A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar.” A frase do autor uruguaio Eduardo Galeano ajuda a explicar a visão de mundo dessas porta-vozes da Regeneração: pensar um futuro cuja manutenção da vida esteja no centro das ações implica em percorrer um outro caminho… agora.
“Somos muito autoindulgentes quando dizemos ‘meu Deus, que mundo terrível. Não consigo fazer nada’. Podemos fazer muita coisa. Não somos pequenos perto da imensidão do planeta. Somos parte dele e estamos carregando a história de mãos em mãos. Somos responsáveis pela história que vamos deixar, e pela história que recebemos daqueles que vieram antes de nós”, conclui Lua Couto.