Ana Melo: “liderar pessoas com deficiência nos torna lideranças melhores” 

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Ana Melo: “liderar pessoas com deficiência nos torna lideranças melhores” 

A head de DEI e HR business partner da Diageo fala sobre como promover inclusão e acessibilidade para PCDs nas empresas 


19 de setembro de 2024 - 9h49

Ana Kelly Melo é head de DEI e HR business partner da Diageo (Crédito: Divulgação)

A trajetória profissional de Ana Kelly Melo começou com a história de sua família. Sua mãe fundou uma ONG quando ela tinha seis anos, em Barueri, periferia da Grande São Paulo, após a migração de sua família de Minas Gerais. Essa experiência trabalhando na ONG desde pequena plantou a semente para sua futura atuação em diversidade e inclusão. 

Na adolescência, entretanto, ela enfrentou uma depressão, que resultou em automutilação e na perda de uma perna, tornando-se uma pessoa com deficiência. Isso transformou sua vida e ampliou as barreiras que enfrentava no mercado de trabalho, inicialmente devido à raça, local de origem e renda, e, depois, pela deficiência. 

Ainda em seu segundo emprego, como assistente auxiliar administrativa, Ana questionou a liderança pela falta de tarefas que lhes passavam. “Falei que tinha mais a oferecer e que aquilo estava acontecendo por causa da minha deficiência. Eles levaram um susto, mas eu disse ‘prefiro ficar na minha casa, porque não estou trabalhando’”, lembra. 

Após um período no setor público, trabalhando em campanhas sociais e de comunicação, decidiu migrar para o mundo corporativo. Em 2021, tornou-se a primeira pessoa com deficiência a ser sócia da XP, onde criou a área de diversidade e inclusão, além de liderar a responsabilidade social, comunicação interna e cultura da empresa. Durante a pandemia, percebeu seu desejo de trabalhar em companhias com impacto social e, assim, chegou à Diageo, onde atua como HR business partner, liderando cultura e diversidade.  

Nesta entrevista, Ana Kelly Melo fala sobre a inclusão e a acessibilidade de PCDs no mercado de trabalho, principalmente em posições de liderança. Além disso, ela reflete sobre como os líderes podem ser mais inclusivos e provoca as empresas a fazerem mais para contratar, reter e desenvolver talentos com deficiência: “falta coragem”. 

Você sente que ser uma mulher com deficiência impactou sua carreira de alguma forma? 

Esse impacto de perceber que a deficiência estava ocupando mais espaço no meu currículo do que tudo o que eu estava tentando desenvolver é algo permanente, infelizmente. Não consegui ainda transformar o mercado como gostaria para poder dizer que isso mudou. 

Este ano, em 2024, recebi um e-mail de uma consultoria com 10 vagas que tinham “tudo a ver com o meu perfil”, e todas eram exclusivas para pessoas com deficiência: porteiro, assistente administrativo, operador de caixa. São profissões válidas, geradoras de renda, mas não batem com quem sou hoje, com a profissional que me tornei após sair do setor público e escalar minha carreira no privado, até me tornar uma executiva de uma multinacional. Mesmo assim, o capacitismo ainda me afeta.  

Ser uma mulher que adquiriu uma deficiência é diferente de ser uma mulher negra desde sempre. Fui uma menina negra e periférica, e cresci assim. A deficiência atinge a autoestima profissional e pessoal de uma maneira diferente. Tive a chance de construir minha autoestima e ambição profissional antes de me tornar uma pessoa com deficiência, e isso ainda é uma das maiores barreiras que enfrento. 

Até hoje, vejo pessoas com deficiência que estão há 10 anos na mesma posição de assistente administrativo, e muitas vezes a culpa é colocada nelas. Mas deveríamos nos perguntar por que as empresas mantêm essas pessoas nessa posição por tanto tempo. Esse impacto na minha carreira gerou em mim a vontade de não permitir que, nos espaços que eu ocupe, isso se perpetue. 

O que precisa ser feito para que mais pessoas com deficiência alcancem posições de alta liderança?  

A resposta é simples e complexa ao mesmo tempo: falta coragem. Coragem para reconhecer que as pessoas sem deficiência ainda estão presas a vieses, e isso acaba se tornando uma barreira para oportunidades. Temos uma imensa população de pessoas com deficiência que é economicamente produtiva e pronta para o mercado de trabalho, mas esse potencial não se transforma em ação.  

Nos conformamos com exemplos individuais, como o meu, e acabamos não avançando coletivamente. Fica a pergunta: onde estão as outras pessoas com deficiência no mercado de trabalho? Falta coragem para que a sociedade, especialmente as pessoas sem deficiência que hoje tomam as decisões sobre oportunidades, se exponham a esse desafio. Elas precisam estar dispostas a liderar alguém que talvez demande um estilo de liderança diferente, a aprender, a serem vulneráveis e admitirem que não sabem algo, e perguntar.  

O problema é que muitos líderes acreditam que precisam ter todas as respostas, quando, na verdade, liderar é muito mais sobre fazer perguntas. Somos fruto de uma sociedade que impôs essa visão sobre liderança, e isso dificulta o progresso. Como, então, esse líder vai chegar até mim e perguntar: “Ana, qual é o melhor recurso de acessibilidade para você?” Essa coragem de se arriscar e assumir o risco de algo não dar certo é o que falta. E, mais importante, de reconhecer que, se não der certo, pode ser pela incapacidade de liderar, e não pela incapacidade da pessoa com deficiência.  

Aceleramos apenas quando as pessoas se tornam verdadeiras aliadas do tema e ele começa a fazer parte das discussões. Infelizmente, essa é um dos debates mais esquecidos. Por isso, é fundamental que o coloquemos em pauta.  

De que forma as empresas podem promover mais acessibilidade? 

Quando converso com executivos, eles dizem: “Ah, eu queria tanto fazer, mas minha empresa não está pronta”. Mas acessibilidade é um conceito universal, com uma aplicabilidade individual, e isso é fundamental de entender. Por exemplo, existem espaços que podem ser acessíveis para mim, mas não para outro PCD, e vice-versa. Um piso tátil, por exemplo, pode ser uma barreira para mim, que pode causar uma queda, mas é essencial para uma pessoa com deficiência visual que usa bengala. 

A primeira coisa que as empresas precisam fazer é começar a tentar. E como elas podem fazer isso? Com a presença de pessoas com deficiência no corpo de funcionários. Eu só vou descobrir o que falta se houver alguém que realmente precise. Isso parece óbvio, mas é exatamente por ser tão simples que acaba sendo ignorado. Se não há nenhuma pessoa com deficiência no ambiente, não existe necessidade visível de recursos de acessibilidade. Mas, a partir do momento em que você contrata uma, essas necessidades surgem, e a companhia deve se preparar para enfrentá-las. 

É fundamental envolver a pessoa com deficiência nesse processo. Ao me chamar, por exemplo, é importante dizer: “Ana, te chamamos porque acreditamos que profissionalmente vai dar certo. Sabemos que vamos encontrar barreiras arquitetônicas, tecnológicas, de comunicação, e principalmente atitudinais. Você topa essa jornada com a gente?” As empresas precisam estar dispostas a ouvir “não” e entender que não é responsabilidade da pessoa com deficiência resolver a ausência dos recursos que precisa. 

Eu escolhi ser uma das pessoas que se propõe a identificar, resolver e transformar esses desafios, mas sem a presença das pessoas com deficiência, as empresas nunca vão saber o que está faltando. Por isso, a pessoa vem primeiro, e a nomenclatura reflete isso: pessoa com deficiência. Tenho certeza de que, quanto mais companhias tomarem essa decisão, mais o mercado vai perceber o quanto esses profissionais podem agregar em diferentes áreas, e vamos conseguir avançar para não manter essas pessoas na mesma posição por 10 anos. 

Como as lideranças podem se tornar mais inclusivas para pessoas com deficiência? 

A primeira recomendação que eu dou nessas conversas é simples: admitir que não sabe. Essa atitude derruba a armadura e te permite fazer perguntas. Não dá para prever tudo o que precisa ser feito quando uma pessoa com deficiência chega ou já está na equipe.  

O envolvimento genuíno da pessoa com deficiência é essencial. A liderança é só uma parte do processo de inclusão. Um líder inclusivo já é um bom começo, mas é fundamental envolver o time, se posicionar diante de piadas, observar se a pessoa está com um escopo de atividades que realmente promova equidade de desempenho. 

Não adianta, como líder, distribuir apenas as tarefas mais simples e menos estratégicas para a pessoa com deficiência. É preciso se observar o tempo todo e manter o diálogo com a pessoa que você está liderando, entender as expectativas dela e reconhecer que, talvez, ela tenha passado por violências que nem percebe ainda. O papel da liderança é transformar as potências individuais em força coletiva. 

Por isso, liderar pessoas com deficiência faz de você uma liderança muito melhor. Isso exige uma comunicação mais clara, mais preparação e maior envolvimento dos stakeholders. Você se torna um agente de transformação para incluir essas pessoas em toda a organização. E é um processo que, com certeza, não só te tornará uma liderança mais capaz de lidar com a diversidade, mas também uma liderança mais eficaz. É um risco que vale a pena correr. 

Qual foi o maior desafio da sua carreira e como você lidou com ele? 

Diariamente, meu maior desafio é carregar o peso de estar em uma posição única. Eu sou quase um unicórnio, né? Uma mulher negra com deficiência, que conseguiu avançar individualmente. Eu escolhi que o meu avanço representasse um avanço coletivo. Poderia ser apenas um avanço pessoal, e isso estaria tudo bem. Mas eu escolhi me posicionar, inspirar, contar minha história e provocar outras pessoas com deficiência a quererem mais para suas carreiras, mostrando que eu não aceitei ficar parada, e que elas também podem ir além, cobrando mais das empresas. 

O maior desafio da minha carreira é o medo de falhar. Tenho medo de, um dia, a empresa virar e dizer: “não deu certo”, e eu ter de admitir para essas pessoas que ali, naquele espaço, não funcionou. Ou o medo de estar indo muito bem individualmente, mas o coletivo ao meu redor não avançar. Esse é um desafio constante, e eu lido com esses “monstrinhos” internos o tempo todo. 

Como você descreveria seu estilo de liderança? 

Somos fruto da sociedade em que fomos criados, com os valores que nos foram plantados. No meu caso, passar por um processo de depressão, que foi muito de repressão dos sentimentos, me transformou. Hoje, sou uma liderança que defende a importância de sentir no ambiente de trabalho. 

Vivemos em um cenário com cinco gerações trabalhando juntas, e talvez quatro delas ainda carreguem essa barreira de não expressar emoções no trabalho. Colocamos o crachá e, de repente, parece que não podemos mais demonstrar sentimentos, como se o ambiente profissional fosse neutro em relação a isso. Mas, como é possível criar soluções, experiências e produtos sem emoções? O problema é que só reprimimos quando essas emoções são negativas. 

Meu estilo de liderança é mobilizador, com muita atenção ao indivíduo e à formação de equipes com habilidades complementares para criar algo único e poderoso. Nos últimos dois anos, tenho focado muito em permitir que as pessoas sintam e expressem suas emoções no ambiente corporativo. A verdade é que não dá para separar o pessoal do profissional. A produtividade vem do todo – das nossas vivências no fim de semana, da capacidade de processar sentimentos negativos em relação à empresa e seguir em frente. Olhar para as pessoas de forma holística é essencial para criar um ambiente mais saudável e produtivo. 

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