Como as marcas podem combater o racismo na publicidade?
Agências, anunciantes e pesquisadores discutem como a indústria pode ser uma aliada na pauta antirracista, sobretudo frente ao recorte de gênero
Como as marcas podem combater o racismo na publicidade?
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Lidia Capitani
21 de novembro de 2024 - 13h23
Historicamente, a população negra sempre esteve apagada ou mal representada nas peças publicitárias. Um estudo conduzido pela agência Heads Propaganda em parceria com a ONU Mulheres observou comerciais nos canais de maior audiência na TV aberta e canais pagos. Ao analisar as propagandas veiculadas, os pesquisadores encontraram que homens brancos protagonizaram 84% das campanhas. Já as mulheres brancas ocuparam 74% dos papéis principais. Entretanto, as mulheres negras estavam em evidência em 22% das peças e, os homens, em apenas 7%.
Dados mais recentes demonstram que houve um aumento da representatividade de pessoas negras na propaganda. Em 2022, 53% das ações dos 20 maiores anunciantes do Brasil, segundo o Meio & Mensagem, tiveram representatividade racial. O resultado é o maior desde 2018, e representa um aumento dos 44% do ano anterior.
O que diferencia as duas pesquisas são as amostras de análise. Enquanto a de 2020 foca em peças publicitárias na televisão, a pesquisa mais recente foca em postagens em redes sociais. Logo, existe ainda uma clara diferença na representatividade de pessoas negras entre estas mídias.
O problema não está apenas na falta de representação, mas também no modo de que essas pessoas são retratadas. “Historicamente, os indivíduos negros foram silenciados e apagados nesse discurso. Quando apareciam, geralmente ocupavam posições subalternas, secundárias e sem voz ativa”, afirma Francisco Leite, pesquisador e vice-líder do grupo de pesquisa Estudos Antirracistas em Comunicação e Consumos da Universidade de São Paulo (USP).
Quando adicionamos o recorte de gênero e analisamos como as mulheres negras são representadas, caímos em outras discriminações. “A literatura aponta que um dos principais estereótipos associados à mulher negra é o de cuidadora, voltada para dar suporte aos indivíduos brancos, além da questão da sexualidade. Essa mulher sempre foi retratada de maneira hipersexualizada, como a ‘negra quente’ ou ‘negra fogosa’”, reflete o pesquisador.
A segunda década dos anos 2000, entretanto, foi marcada pela força dos movimentos sociais, principalmente de pessoas negras, que passaram a questionar e modificar esse cenário. O impacto do caso George Floyd foi um marco importante que fez com que a publicidade, entre tantas áreas e ambientes, respondesse a estas demandas e pressões.
O conceito de publicidade antirracista passa a ganhar força e entrar na pauta da sociedade. “Quando falamos de publicidade antirracista, nos referimos a um conceito mais amplo, que envolve debates, reflexões e práticas direcionadas ao antirracismo, tanto nos espaços profissionais da publicidade quanto nos simbólicos. Isso não se limita às representações, mas também envolve políticas que combatam o racismo estrutural, especialmente nos cargos de liderança”, pontua o pesquisador.
Logo, o objetivo da publicidade antirracista é criar novas narrativas, fomentar a conscientização e promover ações de combate ao racismo —- o que inclui criar oportunidades para pessoas negras em espaços de poder, como na indústria da comunicação.
“Quando se fala de uma publicidade antirracista, ela deve olhar para o passado, para as vivências, as dores e as necessidades, e criar novas narrativas — narrativas reais, que estão acontecendo em muitos lugares, mas que muitas vezes não são refletidas pela publicidade, que ainda tende a ter um olhar enviesado e estereotipado”, defende Débora Fernanda, head de RH, diversidade e inclusão na Gut São Paulo e uma das líderes do comitê de diversidade global da agência.
Quando se fala em espaços de poder, isso passa também pela inclusão de pessoas negras dentro das agências e marcas que desenvolvem propagandas. Os números mais recentes da pesquisa do Observatório da Diversidade na Propaganda demonstraram uma diminuição da presença de mulheres negras nas agências, com uma queda de 21% para 17%. “Precisamos questionar quem está por trás dessas decisões e como podemos ampliar a diversidade e as oportunidades”, afirma Francisco.
Um dos primeiros passos para promover a inclusão, segundo a executiva da Gut, é realizar o “teste do pescoço”, ou seja, observar quem realmente compõe as equipes das agências. “Quando entro em uma reunião, quem vejo? Qual é a composição do time? Isso é um lugar de escuta muito importante”, ressalta Débora. A head aponta que mudanças estruturais demandam orçamento robusto para iniciativas de diversidade e apoio da alta liderança, mas, sobretudo, escuta ativa para entender as vivências das pessoas negras dentro das agências.
A criação de vagas afirmativas é uma das alternativas que as empresas adotaram, mas que deve ser aplicada para toda a hierarquia, não somente cargos de base. “A ascensão dessas pessoas deve ser planejada, com promoções, aumentos e retenção de talentos. É preciso investir no desenvolvimento dessas pessoas ao longo de toda a carreira, desde a contratação até o crescimento dentro da agência”, reforça a head de diversidade e inclusão.
A Natura é um caso que promove o desenvolvimento desses talentos e trata a diversidade como uma estratégia de negócio, conforme destaca Tatiana Ponce, CMO e líder de P&D de Natura e Avon. “Em 2022, lançamos o Compromisso Antirracista da Natura, com metas que impactam o negócio como um todo, incluindo colaboradores e consultoras, incentivando a progressão em seu desenvolvimento profissional”.
Para Débora, a liderança inclusiva é inegociável no cenário atual, o que envolve o desenvolvimento de competências de inclusão, além da promoção de um espaço psicologicamente seguro. “Num ambiente assim, a pessoa pode usar cabelo black, tranças ou roupas que remetem a culturas africanas sem ser questionada”, completa.
Por fim, a especialista aponta dois pontos importantes que também devem entrar na pauta das lideranças: a equidade salarial e um canal de denúncias. “Pessoas negras historicamente ganham menos, então, ao contratá-las, podemos oferecer propostas salariais mais justas, considerando o impacto desigual que um aumento percentual pode ter na vida de uma mulher branca ou negra”, afirma. Já o canal de denúncias, de acordo com a profissional, requer um suporte jurídico e de compliance para que seja tratado com seriedade.
A construção de campanhas publicitárias antirracistas requer um planejamento contínuo, uma compreensão das pautas raciais e a criação de um ambiente colaborativo que valorize diferentes perspectivas. Para isso, times criativos e comitês de diversidade desempenham papeis essenciais e podem alimentar a criatividade de maneira colaborativa.
Os comitês de diversidade das agências atuam como agentes de mudança na construção de campanhas antirracistas, pois são capazes de ouvir os colaboradores internamente e propor ações concretas. “O comitê deve garantir que o ambiente seja psicologicamente seguro e evitar que ideias erradas cheguem ao público. Além disso, pode ser uma fonte criativa de novas ideias”, explica Débora Fernanda.
Empresas como a Unilever têm implementado iniciativas como o coletivo Afrolever, liderado por colaboradores negros, que tem como objetivo atrair, reter e desenvolver talentos negros, além de aumentar a presença em cargos de liderança. Outro exemplo é da Amazon, que, por meio do grupo de afinidade Black Employee Network (BEN), oferece workshops e espaços de networking para funcionários negros.
Novas campanhas têm trazido rostos negros para protagonizar histórias com propostas positivas. A Unilever, por exemplo, em parceria com a Disney, fez o lançamento do filme live action da Princesa Tiana no ano passado. No Brasil com o nome “Juntinhos”, o filme é protagonizado por Tuany Nascimento, fundadora do projeto Na Ponta dos Pés.
Ela interage com a princesa Tiana, da Disney, que motiva a professora a soltar seus cabelos. A peça publicitária, da agência Soko para a Seda, levou o Leão de Bronze em Cannes deste ano em três categorias: Single Market Campaign, Social Behaviour & Cultural Insight e Brand Partnership.
Outro exemplo é da Amazon, que criou a campanha “Sorriso Negro” em celebração à medalhista olímpica Bia Souza. “A ação celebra a força e a resistência da comunidade negra, com ênfase no impacto cultural e histórico, especialmente de mulheres negras, como símbolos de empoderamento”, afirma Camila Nunes, diretora de Marketing e Prime da Amazon Brasil.
O olhar para uma necessidade dessa população e a proposição de uma solução se transformou na campanha da Vult, feita pela Gut, que criou capelos de formatura específicos para cabelos afro. “O impacto disso é enorme, pois reflete a crescente presença da população negra no mundo acadêmico e ainda virou um projeto de lei em Salvador, que exigirá que as instituições forneçam esses modelos. Além disso, o modelo foi disponibilizado como open source, permitindo que qualquer fornecedor de cabelo o produza gratuitamente”, destaca Debora.
Já a campanha Real Tone, de 2022, da Gut para o Google, também apontou para uma desigualdade racial nas câmeras fotográficas, que não reproduziam bem o tom de pele de pessoas negras, principalmente retintas. O Google criou um celular com uma câmera que permite que todas as pessoas tenham seu tom de pele representado nas fotografias.
O papel das marcas nessa luta também perpassa pelo olhar da população negra como consumidora, e pela criação e disponibilização de produtos que atendam suas necessidades e desejos. “A oferta global de produtos específicos para pele preta ou parda ainda é extremamente limitada”, pontua Tatiana Ponce.
“Recentemente, anunciamos a primeira linha de cuidados pessoais da Natura específica para peles negras, Tododia Jambo Rosa e Flor de Caju. A linha é fundamentada pelo Projeto Dandara, estudo que realizou um mapeamento sobre o bem-estar da mulher negra. e apontou necessidades específicas de cuidado para peles ricas em melanina”, exemplifica a executiva.
Em outra iniciativa, a Avon realizou a pesquisa “Black Paper”, em 2020, com mulheres negras, para entender suas necessidades. A partir disso, a marca revisou seu portfólio de maquiagens e lançou uma nova linha com tons variados, desenvolvidos em colaboração com a maquiadora Daniele DaMata, especialista em pele negra.
A comunicação antirracista não precisa se limitar às peças para o público externo. A Natura, por exemplo, criou um Manual de Comunicação Antirracista. “Focado em promover não só diretrizes práticas, mas também letramento sobre o tema étnico-racial na marca, fazendo com que, mais do que incluir pessoas pardas, negras e indígenas na comunicação, possamos também representar novos imaginários e novas narrativas criadas por e para essas pessoas”, destaca Ponce.
Outro exemplo é da Unilever, que criou uma Escola de Marketing Antirracista (EMA) para promover práticas antirracistas internamente, mas também deixar um legado para os comunicadores do futuro.
“O programa revisa toda a cadeia do marketing sob a ótica antirracista, abrangendo desde a valorização das negritudes, antropologia do consumo, semiótica, pesquisa e desenvolvimento de produtos e relacionamento com comunidades até a comunicação nos pontos de venda”, afirma Luana Pereira, líder do squad de EMA Unilever e Gerente Global de Dove Cuidados para o Rosto. Mais de 350 funcionários já passaram pelo programa.
O pesquisador Francisco Leite destaca que o combate ao racismo passa por três objetivos: visibilizar, reconhecer e estrategiar. “O primeiro passo é identificar o racismo nas estruturas, entender como ele se articula nos postos de poder. O segundo é reconhecer essas questões. E, por fim, a última etapa é construir estratégias para enfrentar esses dois primeiros processos e criar políticas antirracistas”, explica.
Nessa perspectiva, Leite propõe três pontos principais para o desenvolvimento de estratégias antirracistas: “mapeamento de problemas, geração de ideias e desenvolvimento de ações. As ações devem ser voltadas para uma visão integrada, que leve em consideração a representação, a inclusão e, principalmente, a participação desses indivíduos em todos os processos publicitários”, acrescenta.
As marcas, na visão dos especialistas, devem assumir um compromisso com a pauta, buscando impacto, justiça social e a construção de um legado. “Quando elas fazem isso, entram de maneira mais firme na luta antirracista, conquistando credibilidade e estabelecendo um diálogo verdadeiro com o consumidor”, conclui Débora Fernanda.
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