Michelle Borborema
25 de novembro de 2022 - 11h27
Camila Miranda é head de Marketing Solution Led da Adobe para América Latina (Crédito: Divulgação)
Camila Miranda passou por muito na vida até se tornar a liderança de marketing da Adobe para toda a América Latina, cargo que ocupa desde junho de 2022, aos 34 anos de idade. “A trajetória das mulheres já e árdua, mas a de uma mulher, periférica e negra é muito mais. Mas tenho o privilégio de dizer que valeu a pena”, conta.
Quando ainda era criança e a mãe perguntava o que queria ser quando crescer, ela apontava para a televisão, pois não tinha referência de profissões intelectuais por perto. A mãe era empregada doméstica. O pai, segurança. Era natural, então, que suas referências de desejos profissionais estivessem na novela, nos telejornais e nos programas infantis, e fossem como sonhos distantes. “Para mim, o que existiam concretamente eram os serviços de pedreiro, doméstica, cozinheiro e metalúrgico, além dos trabalhos na indústria.”
Mas foi a força da mãe de Camila que a levou além. Enquanto as primas iniciavam, ainda novas, suas jornadas nas tarefas domésticas, dona Léa Madalena a impedia de seguir o mesmo caminho. “Ela me incentivava a fazer qualquer coisa, menos esses trabalhos, então eu via filmes ou fazia a lição de casa. Ela sempre dizia que tinha uma profissão digna, mas que não queria aquilo para mim.”
Foi também dona Léa, que trabalhava o dia inteiro, quem colocou Camila em todos os projetos sociais de Jardim São Marcos, bairro periférico onde moravam em Campinas, São Paulo, que era tomado pelo tráfico de drogas. Uma dessas iniciativas foi crucial para o início da trajetória bem-sucedida da executiva. A ONG Grupo Primavera, que nasceu como uma iniciativa para mulheres que precisavam de renda complementar, criava uma rede feminina de produção e venda de bordados e acolhia as crianças da região, que ficavam na sede da organização para não transitarem nas ruas.
“Quando eu era criança, acordávamos com tiros e havia toque de recolher. Mas, dos meus 9 anos até o Ensino Médio, eu ia para a ONG e pude ter muito suporte. Bordei, fiz ponto-cruz, aprendi a ter atenção, foco, cuidado e desenvolvimento motor.” Lá, Camila teve também aulas de informática, mesmo sem computador em casa, além de sessões de marketing pessoal, comunicação e expressão, o que a ajudou a ficar pronta para o mercado de trabalho.
“Eu era uma criança da periferia, com comunicação violenta, porque era o que a gente via e vivia. Sabemos que é difícil entrar no mercado de trabalho com raiva do patrão e falando muitas gírias, mas era isso que a gente aprendia. Então foi a ONG que me trouxe outra perspectiva e me moldou para o trabalho. Quando fiz minhas primeiras entrevistas de emprego, já sabia como me portar”, diz.
Universidade e constrastes
Com tantos aprendizados e vivências na ONG, Camila teve o privilégio de ser precoce em comparação aos jovens da sua realidade. Ingressou como menor aprendiz na Prefeitura de Campinas, ainda aos 14 anos, e pôde gerar renda para apoiar seus sonhos, como a mãe e a ONG a fizeram acreditar. Fez inglês, comprou seu computador. Saiu da escola estadual, onde diz não ter tido referências de pessoas da sua idade, e foi para a Fundação Bradesco. Em pouco tempo, aos 18 anos, ela tirou nota máxima na redação do ENEM e conseguiu uma bolsa integral pelo PROUNI em Rádio e TV na faculdade Belas Artes, em São Paulo.
“Quando passei, fiquei muito contente ao ver minha mãe feliz e meus pais orgulhosos, mas ainda não fazia ideia do que aquilo significava de verdade. Era a aceitação de uma pessoa de outro nível social na universidade”, lembra Camila, que depois sentiria um choque de realidade na faculdade.
Nos tempos de universidade, as coisas não foram muito fáceis para ela, que logo percebeu uma grande lacuna entre sua realidade social e a dos outros universitários, mas seguiu seus objetivos e foi em frente, mesmo com algumas dificuldades no caminho. “Era uma faculdade extremamente elitista. Eram muitos carros, algumas pessoas chegavam de helicóptero.”
Enquanto estudava, ela também trabalhava num call center, ofício muito exigente, para pagar a república onde morava. Algumas vezes, conta, só havia dinheiro para fazer uma refeição por dia, pois a quantia recebida pelos pais era contada. Foi quando pensou em desistir de tudo, no terceiro semestre da faculdade, mas a família de uma amiga a segurou. “Pedi demissão, então não tinha como me manter na república, mas eles me convidaram para morar com eles. Em pouco tempo, consegui um estágio na área e pude ir para uma república melhor. Se fosse apenas pela minha realidade social, não teria conseguido.”
Liderança de “cadeira pequena”
Depois de alguns estágios como “câmera girl”, Camila saiu de São Paulo nos últimos semestres da faculdade e fez o trabalho de conclusão de curso em Campinas. Ela teve dificuldade para ingressar no mercado de rádio e TV e se adaptar à vida na capital paulista.”Infelizmente, em 2010, ainda não estava na moda dar emprego para preto. Era muita indicação, não consegui. Também não me adaptei ao caos de São Paulo.”
Mas, com um amigo da patroa da mãe, que trabalhava na Embratel na época da fusão com a Claro, ela conseguiu um trabalho como operadora de backoffice no call center da companhia. Ela já sabia que gostava de marketing e, como tinha bons relacionamentos na empresa e havia políticas de vagas internas, conseguiu participar de um processo seletivo para PayTV e passou. “Lembro que perguntaram qual seria a minha capa se eu fosse um programa, no que respondi: ‘Camila Miranda: do call center para o marketing’. Foi o que aconteceu”, conta, aos risos.
A partir dali, Camila não parou de crescer. Entrou no universo de B2B, endomarketing e mídia paga. Para se especializar mais na área, fez pós-graduação em marketing organizacional, pela Unicamp. Depois de três anos na Claro, foi para Kroton, onde saiu da zona de conforto e aprendeu muito sobre métricas e resultados. Em seguida, ficou sete meses desempregada até entrar no mercado da tecnologia na Sensedia, como analista júnior. Ela foi a primeira mulher no departamento de marketing da empresa. Em oito meses, foi promovida e criou um modelo escalável de eventos para e companhia. Quando saiu, já era team leader.
Essa postura de “tratorzinho”, como ela mesma diz, vem de suas origens. “Desde quando era nova, minha mãe dizia que eu devia estar perto de quem era melhor que eu, e que precisava me preparar para o próximo degrau quando dominasse algo, sempre mirando lá em cima. Por isso, sempre consegui mostrar que estava preparada para um desafio melhor, que precisava de reconhecimento. Minhas cadeiras sempre ficaram pequenas”, diz.
Aliás, ela não esconde seu próximo passo, embora entenda que há um caminho pela frente: o C-level. “Tenho potencial para ser CMO, mas não quero isso agora, porque acabei de sentar numa posição de head. Tenho muito para aprender sobre o mercado, e quero fazer um programa acadêmico de liderança feminina e me preparar para ser uma CMO de peso. Agora, meu maior sucesso éter conseguido assumir a posição que assumi, considerando de onde vim e aonde cheguei.”
Na batalha por equidade socioeconômica
Quando pensa nos desafios que tem pela frente, Camila diz que avançar na pauta da diversidade e da inclusão é um dos seus objetivos dentro e fora da Adobe, sobretudo pelo ponto de vista da equidade socioeconômica. “Por muito tempo, a Adobe América Latina focou em equidade de gênero, e pouco se falou sobre diversidade e inclusão socioeconômica. Quero mudar isso, e tudo começa pelas lideranças.”
Camila está à frente da Black Employee Network (BEN) da Adobe, iniciativa que busca recrutar, reter e avançar a diversidade na empresa e na indústria de tecnologia (Crédito: Divulgação)
A executiva, que faz parte do Adobe for All, iniciativa global interna da companhia para discutir e criar políticas que incentivem a diversidade e a inclusão na empresa, tem contribuído para transformar essa realidade no dia a dia. Ela afirma ter o time mais diverso da Adobe, pois faz questão de priorizar os candidatos negros nos processos seletivos em que se envolve. “Inicialmente, não olho os currículos das pessoas brancas. Ou fazemos isso, ou não vamos mudar a realidade. E, sinceramente, acho pouco provável não encontrar um bom profissional negro primeiro.”
Camila também está à frente da Black Employee Network (BEN) da Adobe, iniciativa que busca recrutar, reter e avançar a diversidade na empresa e na indústria de tecnologia. Agora, está voltando seus olhos para a mudança desse cenário de maneira mais estruturada no próximo ano. “Precisamos falar sobre inclusão socioeconômica e dar oportunidade para as pessoas pobres trabalharem em grandes corporações como a Adobe. E, se depender de mim, isso vai acontecer. Inclusão vai muito além gênero e opção sexual.”
Hoje, a Adobe já atingiu a equiparação salarial entre homens e mulheres, e em 2021, foi reconhecida como Best Place to Work para LGBTQIAP+ pelo Índice de Igualdade Corporativa 2021 da Human Rights Campaign Foundation.
Mercado de trabalho e racismo
Em meio a tantas iniciativas de diversidade e inclusão na empresa onde é uma das lideranças, Camila diz que fica um pouco mais confortável para ser quem é. “Hoje me sinto mais à vontade para ir num evento com minhas tranças nagô. De quando comecei para onde estou, as coisas mudaram bastante, porque a representatividade ajudou muito. Não temos mais medo de dar voz a nós mesmos. Mas, na minha trajetória profissional, passei por muitas situações de racismo. É difícil falar com um profissional negro que não tenha passado. O Brasil é, sim, racista, mas é um racismo velado.”
Estar na área de tecnologia é mais uma camada para esse cenário, segundo Camila, mas ter um suporte ajuda muito. “Quando temos essa rede, é mais fácil ser mulher no universo de TI. Às vezes, me senti em situações mais masculinas, mas nós conversamos e ficou tudo certo, porque aqui não é um ambiente velado. Os próprios homens se policiam e reconsideram quando têm equívocos nesse sentido”, conta.
Para ela, erros e situações difíceis acontecem, porém, o mais importante é o diálogo e a representatividade efetiva, que dependem da sensação de pertencimento de todos. “Precisamos provocar e estimular o diálogo. Vamos aprender juntos e não podemos esperar que o outro entenda tudo, principalmente quando estamos em posição de liderança. Também não adianta trazer pessoas diversas, seja qual for o grupo, se elas não sentem a representatividade quando entram na empresa. Você tem que primeiro arrumar a casa, porque não adianta dizer que a companhia apoia um grupo se dentro dela não há espaço para eles falarem”, completa.
Rede de apoio entre profissionais negros
A mãe de Camila morreu de câncer em maio deste ano, e ela conta que quase não participou do processo seletivo da Adobe por isso. Novamente, mesmo debilitada, dona Léa deu forças para a filha seguir seus sonhos. “Se não fosse ela, eu não participaria. Ela já estava doente, e eu tinha medo de não ter tempo de estar perto dela no processo por conta do meu trabalho. Mas todos daqui me deram muito apoio.”
A atitude da mãe, para a executiva, mostra uma realidade muito presente sobretudo entre as pessoas negras: “Por trás de todo profissional, sempre há as pessoas que o ajudaram. Meus pais foram fundamentais. A ONG onde passei minha infância e adolescência, também, assim como a família da minha amiga, quando quase desisti da faculdade. Então, acho que a mensagem principal é: seja a rede de apoio de alguém. E, para quem é um jovem profissional negro: procure referências e não tenha vergonha de pedir ajuda.”
Camila relembra a fala da mãe quando pensou em deixar o processo com emoção. “Ela me disse que sofreu a vida inteira para que eu pudesse estudar e ter uma oportunidade como essa. Durante meus 4 anos de faculdade, ela não tirou férias. Na hora, ela me chamou de mole. Mas ela partiu depois de ter dado certo.”
A executiva diz que adora usar frases de efeito com seu time. Uma das favoritas é: “Se você é bom em dar desculpas, não é bom em mais nada”. Para Camila, com determinação e muita rede de apoio, nenhum sonho é impossível. É tudo uma questão de perspectiva.