Carnaval para quem?
O Jorge Ben Jor que tem um fusca e um violão é um privilegiado em 2024, visto que para a grande maioria da população, o carnaval “tá diferente” há muitos e muitos anos
O Jorge Ben Jor que tem um fusca e um violão é um privilegiado em 2024, visto que para a grande maioria da população, o carnaval “tá diferente” há muitos e muitos anos
16 de fevereiro de 2024 - 15h37
É normal escutarmos por aí que o carnaval é uma festa do povo e que só não vai atrás do trio quem já morreu. Curtir a maior folia do Brasil e do mundo é quase um rito de passagem para nós brasileiros, afinal, Jorge Ben Jor já decretou e espalhou para o mundo que o nosso fevereiro sempre será diferente, porque temos o carnaval, ele, um fusca e um violão.
Fato é que, se olharmos com a lupa das pessoas que materializam a resposta do título desta coluna, o Jorge Ben Jor que tem um fusca e um violão é um privilegiado em 2024, visto que para a grande maioria da população, o carnaval “tá diferente” há muitos e muitos anos. O carnaval não é mais a celebração de quem pode curtir, mas a celebração de quem pode pagar. O carnaval não é mais do povo. Ele agora é das grandes marcas. E cabe ao povo “fazer o dinheiro do mês” durante fevereiro eternizado na música País tropical.
O bloco dos informais se espalha pelo Brasil como uma alternativa possível para o complemento de renda. Preciso aqui exaltar iniciativas positivas como da empresa Ambev, que investiu R$ 20 milhões em suporte para ambulantes e catadores e que, na minha opinião, foi uma iniciativa muito mais assertiva do ponto de vista de ESG do que distribuir um número de celulares descartáveis durante a folia e depois defender que o folião faça o descarte corretamente. Sabemos o perfil do folião que teve acesso a esta iniciativa e também sabemos que uma parte mínima deles tem consciência ambiental, mas isso é assunto para outra pauta.
Quem disse que o carnaval é uma festa do povo não mentiu. É um fato. A maior do mundo só acontece porque têm centenas de pares fazendo acontecer, pessoas no grande estilo “gente como a gente”, em sua maioria negras, 50+, mulheres e mães solo, que estão fora da cena, e camarote só se for para trampar. Para alguns o “tio da cerveja”, a “tia do bolo” e agora uma nova modalidade: a “tia ou tio do cuida”, que são senhores e senhoras que abrem suas garagens e são o guarda-volume da massa dos bloquinhos.
Um dado curioso das estatísticas deste carnaval, segundo a revista Crescer: os casos de trabalho infantil aumentaram 38% durante este carnaval. Em meio ao caos, é necessário ser estratégico, e isso significa, por exemplo, acampar nas ruas onde a festa será concentrada ou somar netos, netas, filhos e filhas para otimizar o processo de vendas, ou ocupar mais de um posto de venda ao mesmo tempo.
No ano passado, por exemplo, os cortejos da capital paulista reuniram mais de 15 mil vendedores de bebidas credenciadas e mais um número incerto de ambulantes que ocupam as cordas do lado de fora para tentar uma venda adicional ou oferecer um produto complementar. Estas pessoas vestiram a fantasia que foi concedida a elas há muito e muito tempo: a fantasia do servir para existir.
A precarização do trabalho acende um alerta, entra ano, sai ano, de que o carnaval não é para todo mundo, e se é, há dois lados, tal como antagonistas. Aqui você pode pensar que elas aceitaram estar lá, logo, estão de acordo com as regras. Se você pensa desta forma, faça aquele exercício básico de empatia e se pergunte se você se vê no local dessas pessoas no carnaval do ano que vem. Se respondeu que sim, sabemos de que lado você está.
O que podemos fazer como empresas? Muitas e muitas coisas, e talvez os novos donos do carnaval não estejam preparados para esta conversa. Mas como uma brasileira esperançosa e realista, dou uma sugestão: que tal pegar o mailing destes ambulantes e catadores já cadastrados, oferecer um curso de capacitação técnica para eles e fazer pontes com possíveis vagas de empregos ou programas de empreendedorismo nos demais 10 meses de 2024? Se 1% deles tiverem sucesso, talvez possamos começar a desenhar uma resposta mais inclusiva e humanizada ao meu questionamento inicial, que poderá ser resumida em um pronome indefinido: todos.
Feliz ano novo, Brasil!
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