Com quantos burnouts se faz uma premiação?

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Opinião

Com quantos burnouts se faz uma premiação?

2023 começou e nada novo sob o sol na fantástica máquina de moer gente e produzir cases, mas, se garantir Cannes, tá valendo. Valendo para quem?


13 de fevereiro de 2023 - 8h40

(Crédito: nikko macaspac/ Unsplash)

Criolo disse em sua canção que “meninos mimados não podem reger a nação”. Proponho aqui o exercício de colocar uma lente nesse perfil, nesse arquétipo, dentro das organizações, especificamente no universo do marketing e comunicação. 

Vale ressaltar que “menino” aqui não se aplica a gênero ou faixa etária, mas a postura, comportamento, por vezes difíceis de enxergar em si ou no “brother”. 

Todo mundo conhece um “menino mimado”, mas ninguém admite ter um comportamento similar. Então, onde eles estão? 

Há um lugar intocável de pactos silenciosos do qual pouco se fala por trazer desconforto, por ameaçar o status quo. Um lugar onde o questionamento não é bem-vindo, onde as pessoas trabalham para a perpetuação do sistema. Esse lugar transita entre o consciente e inconsciente, e tem um preço geralmente caro para quem está na base. 

São regras que não estão escritas no papel, mas cujo “código” todos conhecem e seguem por força maior, ou porque se beneficiam dessa cultura, dessa estrutura.  

O lado B do marketing é também um tabu. A publicidade construída até então inspira e expira premiações, é o indicador de sucesso, o KPI para o bônus, é o CMO do ano. 

Mas com quantos burnouts se faz uma premiação? 

Dos assuntos velados, mas conhecidos e naturalizados por todos, podemos citar alguns: o dia a dia com os colaboradores e fornecedores, além dos resultados levados pra sociedade que mascaram bastidores questionáveis. 

A máxima “você tem que ter sentimento de dono” é quase como dizer que “sua empregada é como se fosse da família”. São frases de efeito que não dialogam com a realidade e mascaram um abismo social gigante. 

,Se no ambiente familiar o menino mimado fala o que quer e culpa a empregada pela sua cama desarrumada, ela, por sua vez, que não é da família nem quase dela, vai garantir seu emprego enquanto estiver calada, servindo e sorrindo, por um salário por vezes menor do que a mesada do menino. 

Já com os fornecedores, o cenário é tecido de várias formas, como por exemplo o assédio “sutil” de uma mensagem de WhatsApp no fim de semana – afinal, não existe horário de trabalho quando a prioridade é a vontade do cliente. Não existem limites para a vida pessoal do outro. “Já virou ‘brother’”, eles dizem, tá permitido.  

Relações abusivas e opressoras com solicitações fora do escopo, prazos insustentáveis e ameaças silenciosas de quebra de contrato, porque “eu pago e você obedece”, ou, fazendo jus ao título deste artigo, “a bola é minha, eu decido quando acaba o jogo”. 

O arquétipo do menino não enxerga problema ao enviar o milésimo briefing, que muda de ideia como quem muda de faixa no trânsito. Para quem dinheiro nunca foi problema, naturalizar o fato de uma equipe trabalhar nos fins de semana é algo facilmente aliviado se convencendo de que sabe o que é melhor pro outro. Em poucas palavras: a falácia da meritocracia. 

O abismo entre soft skills e hard skills é outro ponto tratado com superficialidade. Enquanto o líder se prepara para ser o “gestor de pessoas” que ele ainda não é, você, colaborador, que tenha empatia e paciência com o processo dele, mesmo que sofra na pele as consequências – e, se a sua pele for preta, terá que considerar a inabilidade da liderança em lidar com nossas pautas. 

A prática está muito distante do discurso. 

É doloroso se reconhecer dentro de um sistema que o tokeniza da forma mais sútil, nas entrelinhas, que o usa como escudo para justificar opressões lidas e ditas como cultura organizacional. 

A arma do menino mimado é o poder da caneta, que, dependendo do uso, pode gerar muitas consequências. 

Algumas organizações têm potencial para despertar o lado sombrio das pessoas. A competitividade a qualquer preço, mesmo que para isso você tenha que desqualificar fornecedores e colaboradores para se sobressair, justificar sua entrega ou a ausência dela, é um desses sintomas. 

2023 começou e nada novo sob o sol na fantástica máquina de moer gente e produzir cases, mas, se garantir Cannes, tá valendo! 

Valendo pra quem? 

Não, o marketing não é para amadores. Essa afirmação romântica de que basta amar o que se faz que o resultado virá é facilmente desconstruída se você olhar de perto os bastidores da publicidade. 

As “narrativas” — e sobre elas, poderíamos ter um capítulo longo e profundo. Mas vamos fazer um recorte específico: premiações. 

Você, publicitário, quantas vezes viu um projeto “fantasma”ser criado apenas para ganhar premiações? Sem desdobramentos, sem profundidade, apenas um case no formato certo para conquistar mais um leão? 

E se esse é o objetivo, se esse é nosso horizonte maior, aonde queremos chegar, ok… mas eu realmente acredito que a gente pode e deve mais, acredito que um ambiente saudável e sobretudo transparente pode nos levar a fazer uma publicidade de impacto real na vida das pessoas e do planeta. 

Amar e mudar as coisas realmente me interessa mais! 

Amar sem banalizar nem esvaziar essa palavra tão bonita, tão potente! 

Mas a propaganda não é só isso aí, e tem muita gente bacana fazendo um trabalho espetacular. Talvez sem prêmios e sem holofotes, e outras com premiações também, porque o problema não é o prêmio em si, mas parte das pessoas que o alimentam da pior e mais injusta forma de fazê-lo relevante. 

Por fim, tomo carona e me inspiro nas palavras de Tony Marlon, autoridade em generosidade, como bem colocou Ian Black. 

A publicidade pode ser legal, sim, e é. Ela entra nas nossas casas, nos emociona. Pode ser educativa, tem potencial pra fazer rir e também pra nos fazer chorar, pode ser leve e carregar mensagens profundas, necessárias. A publicidade realmente pode transformar e contribuir para uma sociedade melhor. 

E, nesse caminho, a gente aprende todo dia a pensar de outros modos, entende que a gente sempre tem um blind spot. Eu também presto atenção nas pessoas incríveis que encontrei nesse caminho, e essa talvez seja a melhor premiação. 

Ian, você foi mais uma vez assertivo e traduziu em palavras o que sinto: 

“Me interessam as menções e os prêmios que nos orientam para os compromissos com todas as pessoas e todos os seres, que garantam a equidade em todos os seus aspectos, que garantam que a ganância e a violência não mais prevalecerão. É neste lugar que eu quero estar”. 

É nesse lugar que eu quero estar também.

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