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Copa do Mundo Feminina: a longa trajetória de uma história de impacto

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Copa do Mundo Feminina: a longa trajetória de uma história de impacto

Para além dos recordes de audiência, vendas de ingresso e apoio de marcas, competição simboliza avanço importante na representatividade feminina no esporte


26 de julho de 2023 - 15h53

A primeira edição da Copa do Mundo Feminina ocorreu em 1991, na China, com 12 equipes participantes. Mais de trinta anos se passaram e a 9ª edição chegou este ano para fazer história. Pela primeira vez, a competição terá 32 seleções, igual ao formato masculino disputado no Catar, em 2022. A edição de 2019 já tinha alcançado 1,12 bilhão de espectadores no mundo, e foi a primeira a ser transmitida na TV aberta brasileira. Este ano, sete jogos serão exibidos na Globo, enquanto o SporTV e a CazéTV transmitirão todas as partidas. 

Na estreia do Brasil, na segunda 24, quando a seleção marcou 4 a 0 contra o Panamá, o canal do Casemiro bateu o recorde mundial de audiência simultânea no YouTube, com 1 milhão de espectadores online. Já na televisão, a Globo registrou a maior pico de audiência para o horário desde 2008, com 16 pontos no PNT (Painel Nacional de Televisão), que mede a audiência nas 15 principais regiões metropolitanas do país. Juntando o Grupo Globo e a CazéTV, os canais somam 28 marcas patrocinadoras da transmissão do campeonato. Logo de início, a edição deste ano já começou batendo recordes de vendas e audiência, mas antes de celebrar tais conquistas, é importante lembrar a construção e a jornada que as atletas passaram para chegar até aqui.  

Atraso de décadas

Apesar dos avanços, a modalidade feminina ainda está muito atrás da sua versão para homens. A Copa de Futebol Masculino iniciou em 1930, tendo 13 equipes participantes. Para entender o atraso de 60 anos da disputa feminina, que teve seu início na década de 1990, é preciso retroceder no tempo e destacar um fato importante: o Decreto-Lei 3.199 de 14 de abril de 1941.  

Sob a justificativa de que alguns esportes eram “incompatíveis com a natureza feminina”, Getúlio Vargas proibiu a prática de certas modalidades esportivas por mulheres. O decreto foi revogado apenas em 1979, mas a regulamentação do esporte só ocorreu em 1983. Foram quase 40 anos de proibição. “Ainda assim, ele [futebol feminino] sempre existiu nas frestas, como resistência. Na década de 1980, ele voltou a ser legal, mas nunca foi legítimo, no sentido de que sempre houve muito preconceito em volta, algo da mulher sapatão, mulher macho. Nenhum patrocinador se interessava, veículos de comunicação também não e não havia transmissões”, relata Milly Lacombe, jornalista, escritora e colunista do UOL sobre futebol.   

Mesmo assim, as poucas mulheres que se aventuravam nas quadras precisavam se esconder e se disfarçar para bater bola. “Teve que haver muita mulher sendo presa, apanhando e tendo que se esconder. Há relatos de mulheres jogando com homens, na época em que era proibido, em que a polícia dava batidas e elas faziam buracos no chão para se esconder”, afirma Lacombe.  

Década dos avanços

Hoje, a seleção brasileira feminina é avaliada em 2,03 milhões de euros (R$10 milhões na cotação atual), de acordo com o levantamento realizado pela Soccerdonna e divulgado pela Forbes. O valor representa 0,2% do montante do time masculino, avaliado em 899,5 milhões de euros (R$4,7 bilhões na cotação atual).  

Enquanto a seleção masculina nacional foi criada em 1914, a feminina nasceu 74 anos depois, em 1988. Entretanto, os avanços mais significativos para a modalidade aconteceram na última década. Quando Gianni Infantino assumiu a presidência da FIFA em 2016, e instaurou o Comitê de Reforma, uma de suas medidas foi a criação do Conselho da FIFA, no qual cada uma das Confederações Continentais teriam que indicar pelo menos uma mulher como membro.
Quando a instância máxima do futebol implementa tais mudanças, as demais organizações seguiram o exemplo, como no caso da Conmebol (Confederação Sul-Americana de Futebol). Em 2016, o órgão estipulou que, a partir de 2019, para um clube participar das competições continentais, como a Copa Sul-Americana e a Copa Libertadores, ele deveria ter uma equipe feminina ou se associar a um clube que a possuísse. Na época da decisão, apenas cinco times de todo o Brasil estariam aptos a participar, conforme destacou o Jornal Gaúcho Zero Hora, em 2016.  

Os avanços a partir de 2016 e desde o mundial de 2019 foram significativos para a modalidade feminina em território nacional. “A Liga Brasileira foi a que mais cresceu depois da última Copa. Tanto que vemos atletas de alto nível voltando para o Brasil e também atletas da região sul-americana que vêm para cá para jogar. Vimos jogadoras da Argentina, Colômbia, todas elas querem jogar na Liga Brasileira, porque é forte, competitiva, equilibrada”, relata Victoria Albuquerque, atual atacante do Corinthians e consagrada como a maior artilheira da história do time feminino. 

Victoria Albuquerque, atacante do Corinthians Feminino (Crédito: Divulgação)

“Respeita as Mina” 

É com essa frase como slogan que o time do Corinthians feminino entra em campo e abraça como parte de sua identidade. A equipe das “brabas”, como são conhecidas as atletas do clube, foi iniciada em 1997, mas desativada por alguns anos, até o restabelecimento em 2016. Hoje, elas contam com uma boa estrutura, incluindo psicólogo, nutricionista, fisioterapeutas e um técnico dedicado. “Antes, para se tornar profissional, bastava ter talento que já era o suficiente. Hoje, não. Hoje a atleta tem que ser diferente, tem que cuidar do corpo, da mente”, relata Victoria Albuquerque. 

Erika Cristiano é a atual zagueira do Corinthians, mas antes, atuou na seleção brasileira desde 2006, participando de diversas competições regionais e mundiais. Este ano, entretanto, a jogadora estreou como comentarista convidada numa Copa para o Grupo Globo. Ambas vestem a camisa do “respeita as mina” com muito orgulho, mas Erika não parou no uniforme e tatuou o lema em seu braço. “É uma frase que cabe muito na modalidade, mas não só no futebol feminino. Crescemos como modalidade, como profissão e como mulher. É um movimento sensacional que o Corinthians fez e que hoje eu levo independentemente de onde eu estiver”, responde Cristiano.

 

Erika Cristiano, zagueira do Corinthians Feminino e comentarista da Copa do Mundo Feminino pela Globo (Crédito: Globo/Joao Manoella Mello)

Uma Copa Inédita

Depois da edição mais assistida da história, em 2019, a expectativa para a Copa de 2023 vem se confirmando, não só em visibilidade, mas também em impacto. “A Copa do Mundo Feminina, ao contrário da masculina, tem uma noção de que a conquista é coletiva. O fato delas estarem lá jogando, dá uma ideia de solidariedade que não existe no futebol masculino”, afirma Milly Lacombe. Essa Copa também se destaca pela visibilidade na mídia e maior estrutura. A Fifa anunciou que a edição de 2023 já bateu o maior recorde de vendas da história do campeonato feminino. Na França, em 2019, foram vendidos 950 mil ingressos até a estreia do torneio. Este ano, já foram comercializados 1,4 milhão de bilhetes. 

Além das vendas, houve avanços na estrutura da competição. “Pela primeira vez, a equipe brasileira tem uma concentração só dela. Pela primeira vez, elas têm uniformes de viagem, roupas para se apresentar como um time e uniformes feitos sob medida”, destaca. Em relação ao prêmio, a competição também inova ao triplicar o valor recebido no primeiro lugar: de US$ 50 milhões, em 2019, para US$ 150 milhões. No entanto, o montante ainda é significativamente menor do que os US$ 440 milhões pagos na Copa do Mundo Masculino em 2022, no Catar.  

Mulheres em campo, no estúdio e na torcida

Há quatro anos, o último jogo do Brasil contra a França nas oitavas de final teve uma audiência de quase 20 milhões de espectadores somente em território nacional. O feito somente foi alcançado porque as partidas passaram a ser transmitidas em TV aberta pela Rede Globo. De acordo com o Globo Esporte, todas as cotas publicitárias foram compradas, algo inédito para a modalidade feminina. 

Além disso, a equipe de cobertura do campeonato também possui mais mulheres. Direto da Austrália, estarão a apresentadora Bárbara Coelho, a comentarista Renata Mendonça e as repórteres Gabriela Moreira e Denise Thomaz Bastos. No total, serão 12 profissionais na Austrália acompanhando a seleção brasileira, de acordo com a emissora. Já em território nacional, a cobertura do grupo, incluindo Globo e SporTV, terá uma equipe de peso com várias mulheres como Renata Silveira, Natalia Lara, Isabelly Moraes e as comentaristas Ana Thaís Matos, Aline Callandrini e Rafaelle Seraphim.  

“Mulheres narrando é uma coisa bem inédita. A gente não sabia que o futebol podia ter uma voz feminina”, reflete Milly Lacombe. Além de não haver mulheres nas transmissões, as próprias jogadoras eram desprezadas pelos comentaristas. “Antigamente, quando passava na TV, era raro os narradores falarem ou saberem o nome das jogadoras”, afirma a jogadora Erika Cristiano.  

Além das vozes femininas nas transmissões, o futebol tem visto um crescente aumento das vozes femininas nas arquibancadas. “O Atlético Paranaense e o Curitiba abriram o estádio exclusivamente para mulheres durante o Estadual Paranaense, porque os times tinham sido acusados de violência e sofreram uma punição de receber somente mulheres e crianças”, lembra Milly Lacome sobre o ocorrido em janeiro. “Talvez eles achassem que iam só 5 mil pessoas. Mas o estádio do Atlético Paranaense lotou e a voz que vinha das arquibancadas era de mulher”, relata. 

Milly Lacombe, escritora, jornalista e colunista do UOL (Crédito: Reprodução/Instagram)

O caminho pela frente  

De acordo com Victoria Albuquerque, artilheira do Corinthians, os maiores obstáculos do futebol feminino são a falta de investimento financeiro e a questão cultural. “O preconceito está enraizado na cultura do brasileiro, não só no futebol. A sociedade de hoje ainda é machista, preconceituosa e racista. Já sofremos muito com isso também”, responde.  

Por sua vez, a questão financeira é um dos pontos que tem avançado, mas ainda carece de atenção em certas áreas. Victoria e Erika, por exemplo, são patrocinadas pela Adidas, marca que também patrocina a Copa do Mundo Feminina desde 1995, e entendem o impacto que esse apoio gera para uma atleta. “Foi uma coisa que me ajudou muito a crescer profissionalmente. Porque eu tive uma marca que acreditou em mim, acreditou no meu trabalho”, afirma a artilheira. Se antes as marcas não investiam na modalidade por não haver retorno, hoje a situação já é muito diferente. “A gente tem conquistado mais torcedores, atingido mais pessoas, mais famílias, e eu acho que as marcas são as principais responsáveis por isso”.  

As marcas demoraram para começar a investir no futebol feminino, diz a artilheira, por conta, principalmente, da falta de estrutura da modalidade. “Quando eu era mais nova, eu não tinha tanta estrutura, não tinha o material, não tinha uma chuteira boa, uma caneleira. Então, ingressar com material esportivo das atletas tem uma influência direta no desempenho dela”, afirma Albuquerque.  

Se no masculino, os meninos recebem uma chuteira profissional desde os dez anos, as meninas também precisam deste tipo de incentivo desde cedo. “Muitas meninas trabalham, estudam e ainda têm que gastar com material esportivo. Então, isso pesa na questão pessoal das atletas, que afeta também a parte psicológica, a parte da família, porque muitas de nós sustentamos as nossas famílias”, reforça Victoria.  

Sob outra perspectiva, Milly Lacombe destaca a importância do envolvimento das empresas para promover discussões relevantes. “Eu acho que é muito importante que as marcas entrem no jogo para além do marketing. As marcas precisam entrar mudando a estrutura. Elas podem promover educação, principalmente no universo do futebol masculino”, afirma a jornalista. “É preciso que os patrocinadores entrem nesse jogo, o poder público, a mídia. A gente não vai gostar só porque elas jogam bem. E elas jogam bem. Mas a gente vai gostar porque alguém está incentivando a gostar”, conclui. 

Brasil no rol das favoritas

Erika Cristiano também é patrocinada pela Adidas (Crédito: Divulgação)

Erika Cristiano, que atuou em Copas anteriores, enxerga com clareza a proporção que o campeonato ganhou nos últimos anos. “A gente vê a diferença da grande visibilidade que temos agora e antes. Hoje, eu não preciso falar pra galera que vai ter Copa do Mundo, todo mundo sabe. Hoje, ela é transmitida pela Globo, pela SporTV e outras redes”, destaca. “Antes, o pessoal perguntava: Erika, você joga futebol? Agora é diferente, todo mundo sabe quem é a Tamires, Bia Zaneratto, a Lelê, a Adriana”. 

 Apesar da seleção brasileira ainda não ter um título mundial, o time já chama atenção em campo. Mas, como Milly coloca, é importante destacar as gerações de mulheres que vieram antes da equipe da Pia Sundhage, atual comandante da seleção brasileira de futebol feminino, e que batalharam pelos seus direitos de estar em campo. “Houve a geração da Sissi, da Formiga, que tiveram que jogar com roupas masculinas, que rasparam o cabelo em protesto e foram chamadas de feias por dirigentes da CBF”, reforça. “Essa geração chega agora para colher frutos que foram plantados por mulheres que vieram antes. Então, é importante a gente olhar para trás e reconhecer”.  

Victoria mantém altas expectativas pelo time brasileiro. “Eu vejo também o clima entre as meninas pela internet, e está muito legal de ver. Eu tenho certeza de que o Brasil e o futebol feminino, por completo, no mundo inteiro, vai crescer muito mais depois dessa Copa”, reflete a artilheira. 

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