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Opinião

Dear Mr. Quentin Tarantino

Lá se vão 30 anos e ainda somos os mesmos: as narrativas ainda são, em sua esmagadora maioria, contadas por homens brancos


2 de dezembro de 2024 - 12h27

(Crédito: Shutterstock)

Há exatos 30 anos subi a Joaquim Floriano com duas amigas em direção ao finado Cine Lumiére para assistir “Pulp Fiction”.  

Não vou entrar naquele papo de “foi ali que me apaixonei por cinema” porque acho isso meio cafona, mas indubitavelmente saí dali entendendo que havia assistido algo espetacular. Algo que nunca tinha visto antes. 

Sim, sempre fui fã deste senhor. Tenho um poster gigantesco do segundo filme que mais gosto dele: Reservoir Dogs, tenho diálogos de seus filmes na ponta da língua, sei toda a história do menino da locadora, visitei lugares onde aconteceram alguns sets de filmagem e tenho bonequinhas da Beatrix Kiddo. Obviamente não sou a presidente do fã-clube, mas sei, e gosto, do jeito que ele fez (faz) cinema.  

Ele criou um estilo próprio: roteiros não lineares, diálogos niilistas memoráveis e sangue, muito sangue. O famoso: virou referência. Uma edição “meio Tarantino”, um letreiro amarelo, que ocupa a tela, sabe? “meio Tarantino” ou uma trilha “meio Tarantino”, cheia de músicas revisitadas. Emplacou uma linguagem única, não há dúvida.  

Corta para 2024. “Int. Cinema Reserva Cultural – Noite”. 

A personagem que vos fala, já com bem mais idade, menos romantismo, cabelos brancos e algumas cicatrizes, senta-se novamente para assistir “Pulp Fiction”.  Confesso que estava extremamente empolgada porque não há nada como assistir a um filme em uma tela gigante (ainda mais este), mas hoje em dia (depois de ter dirigido séries, filmes, comerciais) a empolgação se mistura com a técnica, não adianta.

É um misto de diversão pura (apenas sendo envolvida pela história) com análise de planos, de figurino, de luz, de acting e bla bla bla (mania de diretora que fica tentando entender como alguém foi tão brilhante).  

A cada sequência me vinha o pensamento: nossa, como este filme é atual, como tudo ainda funciona tão b…. Opa. Para. Espera.  

Foi aí que a minha mesa do divertidamente deve ter começado a dar curto. Uma edição “bem Tarantino” começou a passar na minha cabeça: a cena da personagem Honey Bunny (Amanda Plummer) em cima do balcão da lanchonete, segurando uma arma, desesperada. Marcellus Wallace dando as coordenadas para que Vincent Vega acompanhasse e tomasse conta de sua mulher, Mia Wallace (Uma Thurman). Fabianne (Maria de Medeiros), que recebeu a simples tarefa de trazer um relógio para o Bruce Willis e conseguiu esquecer, se desculpando quase ajoelhada com um sotaque francês que a fragiliza mais ainda.  

Vou parar nestas três, mas a lista continua (assim como em seus outros filmes). Vozes gritavam dentro de mim (porque já aprendi que se estas vozes gritarem para fora serei chamada de louca, mas este é outro assunto. Ou não), na central de controles do meu cérebro. “Gente… olha aí a representação feminina que tanto falamos”. A representação feminina “escrita e dirigida por Quentin Tarantino” (lembra das letras garrafais que viraram referência?).  

E temos todo um cardápio ao seu dispor: a histérica (Honey Bunny) que é, heroicamente, acalmada por um homem para que não faça nenhuma besteira com o revolver na mão. Temos também a burra subserviente, que está ali unicamente para esperar, seguir e aceitar aquele másculo lutador de boxe.  

E a mulher que é uma espécie de fio condutor da trama, Mia Wallace, é tratada como um objeto que pertence ao marido, que claramente decide seus passos e que se convenceu de não ter talento e, portanto, aceitar o que a vida lhe impôs. Meu Deus, como você não percebeu isto antes, Mariana. Me julguem. Há 30 anos não sabia o que sei (nem ele, provavelmente) e o mundo mudou (cof, cof).  

Vejam, não estou aqui amaldiçoando este diretor brilhante. Nada disso está em questão.  

Até porque quando falo de Quentin, falo de Francis, falo de Woody, falo de homem (sim, este final foi intencional).  

Lá se vão 30 anos e ainda somos os mesmos. 

As narrativas ainda são, em sua esmagadora maioria, contadas por homens brancos.  

Neste momento uma pausa para os haters (também conhecidos como homens que não querem colocar em jogo o seu lugar): “aff, ninguém aguenta mais este papo”. 

Bem, eu também não aguento. Segundo o Anuário Estatístico do Audiovisual Brasileiro, publicado pela Ancine em conjunto com o Observatório Brasileiro do Cinema e do Audiovisual (OCA), em 2023 175 filmes foram dirigidos exclusivamente por homens (64,6%) e 64 exclusivamente por mulheres (23,6%); os roteiros também seguem dominados por homens: 134 contra 49.  

Então, resumindo num bom português: quem tá com a caneta na mão ainda é quem sempre esteve. E, hoje em dia, ainda ouso dizer que há um agravante perverso: o maldito discurso “ah, mas as coisas já mudaram bastante, vai?”. Uma espécie de “já fizemos a nossa parte” que conforta quem não está a fim de mudar e que coloca em risco muita coisa que deveria ter evoluído mais.  

A diversidade das narrativas tem que estar refletida também no dinheiro. De que adianta termos mais mulheres atuantes no audiovisual se elas estão atuando sempre em projetos infinitamente menores? Somos as que fazem documentários, séries com baixo orçamento (e se, por acaso, houver uma exceção, acredite: uma mulher em uma série gigante dirigirá uma segunda unidade, provavelmente) e os comerciais com menos dinheiro.  

Produtores, streamings, agências se comprometem a colocá-las ali, sim, mas até a página dois.  

Querido Tarantino, seu filme foi traduzido aqui no Brasil como “”Tempos de Violência. Impressionante como continua atual. Uma ironia “meio Tarantino”, você não acha? 

Best Regards,  

Mariana.   

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