Em defesa do vazio
Quando foi que o nada, o vazio, virou algo proibitivo nas nossas vidas?
Quando foi que o nada, o vazio, virou algo proibitivo nas nossas vidas?
7 de maio de 2024 - 10h32
Em quase todas as horas do meu dia, eu brigo com o tempo. Queria controlá-lo, como a velocidade do áudio no WhatsApp. Não consigo aproveitar plenamente os momentos alegres e gostaria de vivê-los no modo 0.5x. Ao mesmo tempo em que venho perdendo a capacidade de sustentar situações tediosas e gostaria de acelerá-las na velocidade 2.0x. Saiba que escrevo esse texto na fila do supermercado, por não suportar ficar minutos improdutiva, à espera. Vivo no imperativo de preencher todas as horas com entretenimento ou produtividade. Quando foi que o nada, o vazio, virou algo proibitivo nas nossas vidas?
“As pessoas que sentem que têm controle sobre o tempo são mais relaxadas, criativas e produtivas”, é o que relata Jenny Oddell no livro Em defesa do tempo: Descobrindo uma vida além do relógio (Fontanar, 2023). Em uma longa e não-linear narrativa sobre a obsessão da sociedade com o tempo, a autora tenta dar algumas pistas sobre como desconstruir nossa relação com o tempo e pensá-lo coletivamente. Para isso, ela remonta às origens do sistema que usamos, quando “as atividades eram organizadas com base nos sinais ecológicos e culturais, e não na noção abstrata de horas de trabalho”, até os dias atuais, em que a eficiência é privilegiada e o tempo é visto como recurso escasso.
A autora fala de trabalho, mas também fala de lazer. E se pergunta se um descanso genuíno é possível num mundo hiper comercializado. Oddell traz reflexões importantes, porém, não há respostas fáceis para essa defesa do tempo por uma vida mais relaxada e criativa. Seu convite é por um jeito de viver menos extrativista. Uma forma menos centrada apenas nos humanos, e mais integrada a todas as outras formas de vida.
Entre os muitos dias que levei para avançar na leitura, assisti ao maravilhoso Dias Perfeitos, um filme japonês dirigido e escrito pelo alemão Wim Wenders. É a história de um homem solitário de meia-idade que vive tranquilo sua rotina como funcionário de limpeza dos banheiros públicos de Tóquio. Ainda que se passe no tempo presente, este senhor vive quase sem o uso do celular, ouve música pelo tocador de fita cassete e desconhece o Spotify. Mais do que um tratado contra a tecnologia, encarei como um chamado para contemplar o cotidiano sem pressa e com generosidade.
Um dos rituais diários de Hirayama, o protagonista da película, é almoçar sob a sombra de uma árvore e tirar uma foto da luz que bate em sua copa. Cada dia, a paisagem oferece uma foto distinta. Nos créditos do filme, a gente descobre que essa imagem se chama komerabi – uma palavra em japonês que designa as camadas de luz e escuridão sobrepostas formadas pelas folhas balançando ao vento. Komerabi só existe uma vez, naquele momento.
Antes que você me diga que apenas um homem solteiro, sem filhos, com algum conforto material, vivendo em um país desenvolvido, pode se dar a esse luxo, peço que respire. É verdade. Mas também é verdade que a gente “perde muito tempo por não ter tempo pra pensar”. Não só o tempo que a gente perde no celular e nas telas, mas principalmente o tempo das coisas que só acontecem apenas uma vez. Desconstruir a maneira como vivemos o tempo livre é uma disciplina diária, mas uma que venho tentando criar.
Quantos komerabis perdemos hoje?
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