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Como o empreendedorismo fortalece a visibilidade trans

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Como o empreendedorismo fortalece a visibilidade trans

Criar o próprio negócio é uma das saídas para pessoas trans que não conseguem se inserir no mercado de trabalho ou buscam fugir da transfobia


31 de março de 2025 - 15h22

De acordo com uma pesquisa realizada pela Nhaí, em 2023, 80% das pessoas trans já pensaram em empreender. O número revela uma realidade sobre o empreendedorismo nesta comunidade que é muito diferente do restante da população. Isso porque, para as pessoas trans, o empreendedorismo acaba sendo um caminho para quem não consegue um emprego formal no mercado de trabalho ou, ainda, uma via para sair de ambientes transfóbicos e situações de vulnerabilidade social.

Visto a falta de dados sobre essa população no Brasil, uma pesquisa da Faculdade de Medicina de Botucatu (FMB) estimou que 2% da população adulta brasileira se identificava como transgênero ou não-binário em 2021. Outro levantamento, entretanto, indicou que apenas 0,38% dessas pessoas têm um emprego formal. Os números são da plataforma To.gather e foram divulgados pela GloboNews. 

Conforme destaca Noah Scheffel, fundador e CEO do EducaTransforma, muitas pessoas trans optam pelo empreendedorismo por uma questão de necessidade. “A maioria das pessoas trans empreende porque não consegue espaço no mercado de trabalho para se sustentar e, muitas vezes, sustentar a família. Mas, para que esse caminho seja viável, precisamos do apoio da sociedade, de organizações formais e de parcerias, e isso ainda é muito difícil.” 

Noah Scheffel, fundador e CEO do EducaTransforma (Crédito: Divulgação)

Educação que transforma

Para Noah, o empreendedorismo surgiu da necessidade de sair do ambiente de trabalho em que estava. “Trabalhava há anos na área de tecnologia da informação e achava que aquele ambiente seria um espaço seguro para minha transição. Mas não foi. Enfrentei muita transfobia, preconceito, violência e microagressões”, conta. Após sair dali, prometeu a si mesmo que faria algo pelas pessoas trans e travestis que não têm os mesmos acessos que ele. “Sabia que só tinha chegado àquela posição de liderança porque, até então, a sociedade me via como uma pessoa cis, pois ainda não tinha passado pela minha transição de gênero”, continua.

Assim surgiu o EducaTransforma, projeto de empregabilidade para pessoas trans, que oferece capacitação gratuita e acompanhamento médico, incluindo suporte psicológico e endocrinológico para quem desejar iniciar a hormonização.

O projeto, que começou com uma turma de oito alunos, teve uma grande surpresa ainda no início, quando a pandemia impossibilitou a continuidade dos encontros presenciais. “Abrimos mais 30 vagas para formação online. O formulário de inscrição ficou aberto por apenas três dias, e não pelos 15 previstos, porque mais de 2.500 pessoas se inscreveram. Conseguimos aumentar um pouco a oferta de vagas com novas parcerias, mas ainda assim, 2.450 pessoas ficaram em uma lista de espera para novas turmas”, conta Scheffel.

O sucesso atraiu mais instituições e empresas parceiras, o que permitiu a ampliação dos cursos para além do desenvolvimento de software, incluindo outras áreas de tecnologia, atendimento ao cliente, comercial, marketing digital e design. 

Com a constante busca por talentos por parte das empresas, o projeto mudou de modelo. “As empresas passaram a contratar grupos de, no mínimo, cinco pessoas trans, e nós oferecemos uma formação nos três primeiros meses, combinando o desenvolvimento de hard e soft skills com treinamentos para a própria organização. Esse suporte inclui preparar as lideranças para serem mais inclusivas, orientar as equipes sobre como acolher colegas trans e ajustar processos administrativos, como formulários e cadastros, para garantir um ambiente mais seguro”, descreve Noah.

Esse modelo permitiu criar novas turmas e que os talentos já saíssem empregados após a capacitação. Em 2023, o projeto formou diversas pessoas e fechou parceria com mais de 50 empresas. Em 2024, lançaram uma plataforma que conecta empresas com os talentos, em que elas podem postar oportunidades e buscar perfis com base em competências. 

Fortalecimento da base para empreender

São iniciativas como essas que conseguem modificar o retrato da vida de pessoas trans. Entretanto, a falta de apoio, seja em casa, na rua ou no trabalho, ainda marca profundamente a vida dessas pessoas. “Apesar de termos ganhado mais visibilidade nos últimos anos, seguimos no mesmo lugar: desemprego, falta de acesso à vida digna e, para muitas mulheres trans e travestis, a prostituição como única alternativa. Sem apoio, fica impossível ocupar novos espaços, e isso afeta diretamente nossa saúde física e emocional”, reflete Noah.

A saúde mental impacta diretamente a capacidade de empreender de qualquer pessoa, e é ainda mais latente em populações subrepresentadas que experienciam o preconceito estrutural e cotidiano. No curso de empreendedorismo para pessoas trans da Rede Mulher Empreendedora, o TransEmpreender, uma das frentes de trabalho foi exatamente o fortalecimento das soft skills, como inteligência emocional e autoconhecimento. 

“Os primeiros encontros trouxeram à tona questões emocionais muito fortes. Nesse processo, emergiram muitas dores emocionais que, em alguns casos, demandaram encaminhamento psicológico ou outras formas de suporte, além da educação empreendedora”, diz Caroline Aguiar, COO da Rede Mulher Empreendedora.

Caroline Aguiar, COO da Rede Mulher Empreendedora (Crédito: Barbara Ferreira)

O TransEmpreender surgiu do desejo do Instituto Rede Mulher Empreendedora de criar um projeto com foco na população trans. Com base em uma metodologia proprietária, o modelo de ensino foca no desenvolvimento de habilidades socioemocionais, como autoconfiança, autoconhecimento, motivação e autoliderança. Só depois são introduzidos conceitos sobre negócios, como vendas, finanças e redes sociais. Após a capacitação, as empreendedoras também passaram por mentorias e algumas receberam capital semente.

Neste processo, Caroline Aguiar identificou uma característica comum a muitas empreendedoras trans do curso: várias alunas não se identificavam como empreendedoras. “Para elas, era algo temporário, um quebra-galho, sem a perspectiva de que essa atividade poderia ser estruturada como um negócio de fato. Nosso trabalho foi justamente ajudá-las a enxergar esse potencial e a direcionar mais energia para essa construção”, destaca a executiva. 

Além disso, muitas participantes do curso viviam em situações de vulnerabilidade social, seja na prostituição, ou vivendo em abrigos, casas de acolhimento ou até mesmo nas ruas. “Essa instabilidade torna ainda mais difícil estruturar um negócio”, ressalta Aguiar. Logo, o empreendedorismo surge também como uma via para escapar destas situações.

Combatendo preconceitos

Para além das agressões físicas e verbais, a transfobia também se manifesta como descrédito sobre as capacidades das pessoas empreendedoras trans, que precisam se provar constantemente. “Olham para uma pessoa trans e pensam: ‘Ah, que legal, vou chamar para contar uma história triste’. Mas não enxergam uma liderança capaz de estruturar uma estratégia sólida de negócios, falar de marketing, de produto, de várias subáreas dentro de uma empresa”, reforça Gabriela Augusto, CEO da Transcendemos, consultoria em diversidade e inclusão.

Gabriela Augusto já teve que ouvir frases como “Queríamos te contratar para um projeto, mas ficamos com medo. Achamos que seria demais trazer alguém como você para falar com nossos diretores”, lembra. “Ouvir isso diretamente já foi chocante, mas imagino quantas vezes essa decisão foi tomada sem ser verbalizada. É muito comum que pessoas como nós sejam preteridas sem sequer saber o motivo”, reflete.

O preconceito foi um dos grandes marcadores que motivou o empreendedorismo para Gabriela, que começou sua jornada empreendedora ainda na faculdade, enquanto passava por sua transição de gênero. Ela era estudante bolsista de Direito na PUC-SP e, apenas com uma impressora e papel, imprimiu pequenos livretos sobre diversidade e inclusão. “Era um passo a passo sobre como promover uma cultura de respeito dentro das empresas – respeito à comunidade LGBT, às mulheres, às pessoas com deficiência e à diversidade de forma geral. Peguei esses livros e saí de porta em porta, visitando empresas, restaurantes, academias e coworkings”, conta.

Foi um período desafiador, de muito trabalho de convencimento para mostrar que a diversidade não era apenas uma pauta social, mas que poderia ser um ativo estratégico para qualquer empresa. Com o passar do tempo, Gabriela foi ganhando reconhecimento e prêmios como da Forbes, Bloomberg, McKinsey, LinkedIn e outros. Tais reconhecimentos foram essenciais para que sua consultoria, a Transcendemos, se estabelecesse como referência na área e que ela começasse a dar aulas em instituições como a Fundação Dom Cabral, a Escola Nacional de Administração Pública e a FAAP.

Gabriela Augusto, CEO da Transcendemos (Crédito: Divulgação)

Fortalezas do empreendedorismo trans

Os desafios podem ser grandes para esta comunidade, mas também são suas forças. A resiliência é um dos ativos que as pessoas trans trazem para suas jornadas empreendedoras. “Nossa força de vontade nos torna grandes profissionais e empreendedores. E, por vivermos tantas barreiras e preconceitos, desenvolvemos uma visão diferenciada sobre a prestação de serviços, criando negócios mais inclusivos e inovadores”, destaca Noah.

Do mesmo modo que a sociedade falha com esta comunidade, elas sabem da importância da responsabilidade social e carregam isso para os negócios que criam. “Nosso olhar para o empreendedorismo vai além do individual: pensamos na sociedade, na sustentabilidade e na responsabilidade social, pontos que grandes organizações deveriam considerar, mas muitas vezes ignoram”, complementa Scheffel.

Além disso, existe uma grande vontade de aprender e de aproveitar as oportunidades. “Percebemos uma vontade genuína de aprender. A busca por conhecimento e o desejo de transformar seus sonhos em realidade ficaram evidentes ao longo do processo”, afirma Caroline.

A criatividade e inovação é outro ativo destacado. “Se você está sozinha, sem apoio e sem tanto dinheiro, precisa inovar. A gente enxerga o mundo por uma perspectiva única e colocamos muito da nossa trajetória e dos nossos sentimentos no que fazemos”, ressalta Gabriela Augusto.

Como apoiar o empreendedorismo trans

“Olha, eu sempre digo que o primeiro passo é contratar pessoas trans”, afirma Noah Scheffel. “Ano após ano, a Antra [Associação Nacional de Travestis e Transexuais] lança um dossiê, e seguimos com os piores índices de empregabilidade. Isso impacta diretamente a expectativa de vida, porque a falta de acesso ao mercado de trabalho compromete direitos básicos como saúde, educação continuada, moradia e alimentação, principalmente para quem vive em situação de vulnerabilidade”, continua.

Um segundo passo concomitante é preparar a empresa para receber pessoas trans, fornecendo letramento para lideranças e times, trabalhando para criar um ambiente inclusivo e garantindo que elas não sofram violências. 

Outro modo é dar suporte a empreendedores trans ou projetos focados nessa população. As empresas podem ser uma força propulsora para ampliar as oportunidades e acessos para a comunidade. “É fundamental apoiar projetos que fomentem a inclusão de pessoas trans, seja por meio da capacitação, da empregabilidade ou simplesmente criando espaços de pertencimento. No EducaTransforma, essa parceria é a base de tudo. Sem ela, o projeto não existiria, e sem a abertura do mercado, pessoas trans continuariam sem acesso ao trabalho e, consequentemente, a direitos que deveriam ser garantidos a todas as pessoas”, reforça Noah.

Consequentemente, as empresas podem incluir negócios de pessoas trans na sua cadeia de fornecedores. “É essencial criar oportunidades de exposição e incentivar o consumo de produtos e serviços gerados por esse público. Muitas empresas já têm políticas de diversidade entre fornecedores e buscam tornar suas cadeias de valor mais inclusivas”, destaca Caroline. 

Para Gabriela Augusto, as empresas também precisam rever suas políticas internas e processos ao contratar negócios de pessoas trans. “Muitas vezes, ao contratar um fornecedor de um grupo subrepresentado, as exigências tornam a contratação inviável. Políticas de pagamento mais ágeis e critérios de contratação mais acessíveis fariam uma grande diferença”, afirma.

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