Favela é target: o poder de consumo de bilhões liderado pelas mulheres
A fundadora do Nós, Novo Outdoor Social, reflete sobre como as marcas podem comunicar com o público das favelas brasileiras
Favela é target: o poder de consumo de bilhões liderado pelas mulheres
BuscarA fundadora do Nós, Novo Outdoor Social, reflete sobre como as marcas podem comunicar com o público das favelas brasileiras
Lidia Capitani
25 de abril de 2025 - 7h20
Emilia Rabello, fundadora do Nós, Novo Outdoor Social (Crédito: Divulgação)
O potencial de consumo nas favelas é de R$ 167 bilhões por ano no Brasil. Porém, mais do que números, esse mercado revela comportamentos, prioridades e dinâmicas próprias. Quem dita esse ritmo, majoritariamente, são as mulheres. Elas são protagonistas na organização financeira da casa, influenciam decisões de compra da família e atuam como curadoras das marcas que entram (ou não) em seus lares.
Entender o consumo na favela exige olhar para essas mulheres com profundidade: suas jornadas, seus valores e suas expectativas. Quando marcas escutam de verdade essas consumidoras, conseguem sair do lugar-comum, romper estigmas e construir conexões reais. É a partir dessa escuta ativa e de dados consistentes que é possível transformar a percepção, e, principalmente, a presença das marcas nesses territórios.
Emilia Rabello, fundadora do Nós, Novo Outdoor Social, faz uma análise sobre o comportamento de consumo das pessoas que vivem nas favelas brasileiras e discute como as marcas podem se conectar verdadeiramente com esse público.
Emilia Rabello: O tracking das marcas foi uma evolução do trabalho do Nós de mapeamento, identificação e valorização das favelas como mercado consumidor. A gente começou em 2017 fazendo pesquisas preditivas, baseadas nas datas comerciais que mais movimentavam o consumo. Com isso, fomos desmitificando alguns mitos sobre esse público, como a crença de que a favela não era bancarizada, por exemplo. Com o crescimento das fintechs, 98% das pessoas tinham uma conta em banco digital. Então a gente validava se o que o mercado pensava era mesmo realidade.
Aí demos um passo além dessas pesquisas preditivas e criamos o tracking, que virou uma ferramenta de decisão para os CMOs. Quanto mais informação sistematizada, mais a gente consegue entregar dados reais que colocam a favela no mapa do consumo e das campanhas publicitárias. Como negócio de impacto, a gente sabe que, quando uma marca dialoga com a favela e trata esse público como protagonista, ela ganha um lotezinho no coração do consumidor.
Nas nossas pesquisas anteriores, a gente já perguntava qual era a lembrança de marca, onde a pessoa comprava e qual foi a última marca que ela comprou. Mas agora, com o tracking, temos uma amostra maior e conseguimos traçar um perfil mais detalhado, segmentando por região, sexo e idade. Essa capilaridade fortalece o conceito da favela como target e como estratégia real de marketing, para as grandes marcas aumentarem seu share no mercado brasileiro como um todo.
ER: O potencial de consumo nas favelas é de 167 bilhões de reais. Mas é importante entender o que isso significa. Potencial de consumo é uma estimativa calculada com base na Pesquisa de Orçamento Familiar e dados do Serasa, como limite de cartão de crédito, cheque especial, crédito bancário. Então, é a soma da renda real com a capacidade de endividamento. Mas, pra esse consumo acontecer de fato, a pessoa tem que estar confiante na economia.
A confiança cai quando tem instabilidade. Foi o que aconteceu na pandemia, com muita gente desempregada. Mas agora, com os dados mais recentes da Receita Federal e o aumento de empregos formais registrado no fim de dezembro, estamos vendo um cenário de quase pleno emprego, mesmo com os juros altos e os desafios econômicos. Quando analisamos esse público, vemos que ele está nas classes B2 e C1. Favela não é CDE. O DE está no Vale do Jequitinhonha, nas áreas ribeirinhas da Amazônia. Nos grandes centros urbanos, a realidade é outra. Não dá para achar que quem mora na Rocinha está em condição de trabalho análogo à escravidão por falta de oportunidade. Essas pessoas consomem, empreendem. A prova disso são os mais de 260 mil comércios com CNPJ nas favelas. Ninguém abre salão, mercado, pet shop em lugar onde não tem consumo.
Então, sim, a favela tem potencial de consumo real, baseado na renda e na capacidade de crédito. E é por isso que as marcas precisam estar presentes nesses territórios. Muitas vezes, elas negligenciam esses espaços por puro preconceito, por acharem que favela é só violência ou vulnerabilidade social. Claro que tem violência, tem vulnerabilidade, assim como tem em qualquer cidade. Mas a maioria das pessoas que moram na favela são trabalhadoras, são empreendedoras.
Quando a gente faz o tracking das marcas, mostramos esse potencial e abrimos a porta para um novo target, com produtos que todo mundo consome: arroz, feijão, ovo de Páscoa, chocolate, achocolatado, leite em pó, fralda, sabonete. O tracking é uma ferramenta importante para o CMO, mas também é um serviço para o Brasil. É uma forma de reconhecer um público que o País muitas vezes ignora.
ER: A favela é majoritariamente feminina e mais jovem. Então, se o potencial de consumo é de 167 bilhões de reais e 60% disso é feminino, já dá pra ter uma ideia. Quando a gente olha a estrutura familiar da favela, em sua maioria, é liderada por mulheres. E algo que me chamou muito a atenção foi o dado sobre empreendedorismo: 60% dos empreendimentos são liderados por elas. E, em média, cada um emprega duas pessoas. Ou seja, é a empreendedora mais duas pessoas. Considerando que a média das famílias de favela é de três pessoas, essa mulher está sustentando, direta ou indiretamente, nove pessoas — a família dela e a dos funcionários.
Ela toma decisões não apenas sobre a casa dela, mas também impacta as famílias das pessoas que trabalham com ela. E, quando a gente compara com o empreendedorismo nacional, os números de mulheres caem para 34%, segundo o Sebrae. Ou seja, essa mulher, líder de família, empreende muito mais que a média do País. E, vale lembrar: o empreendedorismo na favela não é aquele com pitch e investidor na plateia. É por necessidade. Isso se reflete no tracking das marcas. Porque é ela quem mais muda de opinião. As mulheres são muito mais abertas a experimentar marcas novas, seja por preço, por luxo ou por querer se dar um presente. Estamos falando de um público decisivo na hora da compra. Por isso essa mulher da favela é estratégica. Não só como target para marcas de bens de consumo, mas para a sociedade brasileira como um todo. Se essa mulher for cuidada, apoiada e impulsionada, ela vai crescer seus empreendimentos, gerar mais riqueza, criar melhor seus filhos e devolver à sociedade brasileira um futuro muito melhor.
ER: Quando começamos com a Nós, era difícil encontrar uma pessoa na favela com conta bancária. Com o tempo isso mudou, mas não foram os bancos tradicionais que fecharam esse gap. Quem fechou foram as fintechs. Por quê? Menos burocracia, zero taxa e mais funcionalidade. Essas são as palavras-chave para qualquer marca que queira entrar nesse território. Se você acha que sua vida é corrida, imagina a de quem vive na periferia. Acorda em casa quente, sem ventilação, às vezes sem luz, longe do trabalho, sem ninguém para ajudar. As marcas precisam entrar para facilitar a vida desse consumidor.
No caso dos bancos, o Nubank é a marca premium. Não tem tanta competição ainda, mas tem espaço para outros se digitalizarem. E aí vem um ponto importante: a confiança. Os bancos precisam se aproximar desse novo consumidor explicando como usar os serviços, principalmente por causa dos golpes. O banco que quiser conquistar esse público novo tem que agregar conhecimento. Falar sobre fraude, sobre investimentos, de forma didática e próxima. Isso é essencial, especialmente para o público 50+. Quanto mais simples for o diálogo, mais digital esse público vai ficar, e o setor bancário ganha capilaridade em todas as camadas e idades.
ER: É sobre proximidade, sobre estar na gôndola do consumidor. Eu falo gôndola porque não adianta só fazer publicidade e gerar desejo se o produto não está lá, distribuído dentro da comunidade. Ainda mais quando falamos de bebida, seja alcoólica ou não alcoólica. Porque a bebida está muito ligada ao lazer: é a Coca-Cola no almoço de domingo, com aquela lasanha gostosa, ou a cerveja no fim do dia pra relaxar.
E aí volta a questão da experiência. Esse setor de bebidas tem uma distribuição super capilar. Elas vão estar na gôndola. Mas precisam buscar esse marco de experiência, entender o preço como fator-chave e, principalmente, assumir esse público como consumidor de verdade.
Fizemos uma campanha para Guaraná Antarctica com a Soko que foi uma grande sacada. Na época da Copa do Mundo, selecionamos muros pintados na favela e pagamos um salário mínimo durante três meses para as pessoas manterem aquele muro decorado. E a única coisa que colocávamos era a marca do Guaraná Antarctica. Isso é pertencimento e valorização real da cultura. É respeito. E, vamos combinar: todo mundo gosta de elogio, mas quando você recebe dinheiro, isso é reconhecimento de verdade. Então, quando a marca coloca dinheiro ali, facilitando a vida desse consumidor, o impacto é muito mais forte.
ER: O Boticário trabalha muito bem a questão da revenda. De novo: capilaridade, facilidade de compra. E, ao longo do tempo, eles foram trazendo uma diversidade brasileira real, tanto nos tipos de produto, quanto nas fórmulas, com um olhar pensado para essa mulher e para esse público. Eles também usam muito bem as regionais, o que aproxima ainda mais a marca dos valores de diversidade.
O Boticário pode estar na frente, mas a diferença é pequena. É uma disputa acirrada, porque produto de beleza é mais fácil de trocar, de mudar de opinião. Por isso, Natura e Avon estão muito próximas do Boticário na disputa.
A valorização da mulher brasileira — do cabelo cacheado, da pele preta, das diversas tonalidades — é uma pauta que as marcas de beleza já perceberam há muito tempo e isso está presente nas propagandas delas. E aí entra também a importância da escolha do casting, de quem vai representar a marca. Quando olhamos para o mercado de creators, por que não olhar para essas mulheres das comunidades que são influenciadoras e têm um diálogo muito mais próximo do que uma grande celebridade? Então, quanto mais próximo o diálogo com essa realidade, não apenas financeira, mas também comportamental e ancestral, mais a marca sai na frente.
Teve uma campanha muito legal da Avon que fizemos para a linha Power Stay. Levamos as revendedoras para serem as protagonistas. Em cada favela, identificamos quem era a revendedora local e as levamos num caminhãozinho que chamamos de “babado móvel”, todo envelopado de dourado.
ER: Awareness é super importante. Não adianta só fazer experiência e depois sumir. Tem que estar presente, criar momentos de conexão real com o consumidor. Pode ser em momentos de relaxamento, fim de semana, mas tem que fazer sentido com o que a marca propõe e surpreender. Experiência transforma consumidor em brand lover. Mas, pra isso, tem que olhar a narrativa. E aí entra a importância da diversidade dentro das agências. Se não tiver diversidade nos times criativos, de estratégia, você não traz essa narrativa de verdade. A gente precisa de times diversos para garantir que a comunicação dialogue 100% com esse público.
Esse consumidor é economicamente empoderado, mas não pode errar na compra. Ele consome de forma justa. Se comprou uma vez e não funcionou, muda rápido. Então todo esforço de marketing não pode ser para um pico de venda no mês e, no seguinte, o gráfico despencar. O objetivo é criar uma relação contínua.
Outro ponto fundamental é ser encontrado na comunidade. As pessoas consomem onde moram. Então, o trade precisa entregar dentro da favela também. E quando a gente fala de favela, não é só B2C. Tem o B2B também. A bebida não está no mercado da favela, mas está na adega. O hambúrguer não está no mercado, mas está na lanchonete. Então, claro que tem que olhar pro consumidor final, mas também pro B2B. Porque já viramos a página daquela história de “favela potência”. Isso já foi. Agora é “favela é target”. E se é target, quem é esse target?
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