Gotas d’água, tsunamis
A nova NR1 e por que a vergonha não deveria estar em quem adoece, mas no ambiente que o faz adoecer
A nova NR1 e por que a vergonha não deveria estar em quem adoece, mas no ambiente que o faz adoecer
24 de abril de 2025 - 7h20
(Crédito: Shutterstock)
Em breve, entra em vigor no Brasil a nova NR1, que trata da Gestão de Riscos Ocupacionais. Pela primeira vez, de forma explícita, riscos psicossociais como o burnout entram na equação das obrigações legais das empresas. Isso significa que saúde mental no trabalho deixa de ser um “tema de RH” ou uma “causa nobre” e passa a ser questão de compliance.
Ambientes tóxicos, jornadas excessivas e culturas que romantizam o excesso de trabalho precisarão ser revistos não apenas por vontade, mas por exigência legal. Um marco importante num País que hoje ocupa o segundo lugar no ranking mundial de casos de burnout, atrás apenas do Japão.
Durante muito tempo, experiências como a minha foram tratadas como casos isolados. Como se o problema estivesse na pessoa, e não no sistema. Eu mesma acreditei nisso por um tempo. Só depois de adoecer é que compreendi que o que vivi era um reflexo direto de um ambiente de trabalho tóxico, sustentado por uma cultura de urgência permanente, excesso de demandas e a normalização do sofrimento.
A chegada da nova NR1 representa, para mim, um marco simbólico e prático: é o reconhecimento de que saúde mental no trabalho não é luxo, é responsabilidade. E que o burnout não é um “colapso individual”, mas um sintoma coletivo de um modelo que precisa urgentemente mudar.
Meu colapso ocorreu no dia 27 de janeiro. Lembro bem, era a semana do meu aniversário. Tinha acabado de completar 47 anos. Como presente, escolhi um dia num spa, seguido de um jantar com a minha mulher. Um dia perfeito. Fazia frio em Londres. Cinza, escuro, e a previsão não era animadora. Sol e calor, só lá por maio.
Naquela manhã de 27 de janeiro, por volta das 11 horas, meu corpo me deu um aviso que mudou a minha vida: se você não parar, eu vou parar você.
No táxi, a caminho da agência, tudo aconteceu de repente. Meu corpo travou, meu lado esquerdo paralisou de dor, minha respiração ficou ofegante, meu coração disparou, e um choro convulsivo tomou conta de mim. Naquele momento, a certeza da morte batendo à minha porta. Morrer num táxi em Londres na semana do meu aniversário não estava exatamente nas minhas resoluções de ano novo.
Dez minutos antes, eu tinha recebido uma ligação de trabalho. Nada importante, apenas uma gota d’água capaz de criar tsunamis, um gatilho de proporções atômicas. No consultório médico, o diagnóstico veio com uma mistura de alívio e choque. Não era um ataque cardíaco e eu não estava morrendo. Ufa. Mas também não era algo que eu imaginaria viver: era um burnout, crise de ansiedade aguda, depressão. Diagnóstico feito, o processo para a cura não seria rápido: antidepressivos, terapia, meditação, exercícios físicos moderados, 3 meses de licença médica.
Se você leu até aqui, quero que continue. Porque essa história, embora seja minha e cheia de privilégios, pode ser sua também.
Burnout foi reconhecido pela OMS em 2019 como uma síndrome na classificação internacional de doenças. O burnout não é classificado como uma condição médica, mas sim como uma síndrome que influencia a saúde de forma holística. Síndrome porque é uma doença sistêmica, um conjunto de sintomas interligados que afetam múltiplos aspectos do funcionamento físico, emocional e mental da pessoa. É difícil de prever, é difícil de colocar a ‘culpa’ em só um lugar. E, justamente por isso, é urgente que ele seja enfrentado de forma estruturada e coletiva, como propõe agora a nova NR1.
O Brasil ocupa a segunda posição mundial em casos de burnout. Estima-se que aproximadamente 30% dos trabalhadores brasileiros sofram com essa condição. Em 2023, foi registrado o maior número de pessoas afastadas por burnout dos últimos dez anos no País, representando um aumento de 136% em relação a 2019. Estima-se que esses números tenham dobrado em 2024.
Governos ao redor do mundo têm implementado medidas para combater o burnout. Na França, por exemplo, desde 2017 está em vigor a chamada “Lei do Direito à Desconexão”. No Brasil, além da NR1, está em tramitação o Projeto de Lei 1.464/22, que propõe uma Política Nacional de Atenção Integral à Síndrome de Burnout no SUS. O avanço dessas políticas mostra que o tema finalmente está saindo dos bastidores das conversas corporativas para ocupar o espaço que merece: o da responsabilidade institucional.
Na indústria do marketing, comunicação e entretenimento, os relatos de burnout são cada vez mais frequentes. A pressão constante, jornadas intermináveis e uma cultura de glamourizar o excesso de trabalho têm levado muitos profissionais da área ao limite. Uma pesquisa do Sistema Sinapro/Fenapro mostrou que 71% das agências publicitárias foram impactadas por altos níveis de estresse. Um ambiente de trabalho doente compromete não só a saúde dos profissionais, mas também a produtividade, a criatividade e o impacto social dessas organizações.
No Reino Unido, 64% dos profissionais da indústria de publicidade e mídia consideraram deixar o setor em algum momento devido ao impacto negativo do trabalho em seu bem-estar. O problema é tão grande que levou à criação do primeiro sindicato dos profissionais da comunicação, o Creative Communications Workers (CCW), com o objetivo de lutar por condições mais justas e humanas de trabalho.
No Brasil, ainda estamos engatinhando. Temos mais histórias do que dados, mais silêncios do que políticas. E essas histórias falam de assédio, abuso moral e sexual, bullying, jornadas insanas, gritos, ameaças. Pesquisas como “Hostilidade, silêncio e omissão: o retrato do assédio no mercado de comunicação de São Paulo” (2017) trazem números alarmantes: 99% dos profissionais já presenciaram assédio moral, e 97%, assédio sexual. A cultura do medo e da exaustão continua sendo tolerada em muitas empresas, e é justamente aí que normas como a NR1 podem se tornar ferramentas de transformação.
Normalizamos, romantizamos, memetizamos e assistimos passivos ao absurdo, muitas vezes achando que o problema está em nós. Não está. A síndrome de burnout é sistêmica. O indivíduo adoece porque o ambiente está doente. A solução não está apenas em medicar ou fazer terapia, mas em curar ambientes de trabalho, redesenhar culturas organizacionais e aplicar políticas que promovam o bem-estar real e duradouro.
Precisamos falar mais sobre isso. Precisamos de políticas, de métricas, de ações, e também de coragem institucional para mudar o que precisa ser mudado. Precisamos de empresas que levem a sério o monitoramento de clima organizacional, ofereçam modelos de trabalho mais flexíveis e estabeleçam limites saudáveis nas relações com clientes e fornecedores. Que entendam que cumprir jornada e respeitar pausas não é perda de produtividade, mas garantia de sustentabilidade.
A nova NR1 pode ser o começo de uma virada. Mas ela só terá efeito real se for levada a sério. Se for acompanhada de dados, de fiscalização, de compromisso. Se provocar mudanças no sistema, e não apenas um check na lista do jurídico. A vergonha não deveria estar em quem adoece, mas no ambiente que o faz adoecer.
Fácil? Nem um pouco. Mas, se você chegou até aqui, sabe exatamente do que estou falando. Vamos juntos, porque só assim vamos longe.
Ah, e para quem ficou curioso: depois de três meses afastada do trabalho, pedi demissão. Percebi que o lugar onde estava não queria ser curado. Mas eu, sim. Mudei de País, de carreira, e, acima de tudo, me acolhi.
Se hoje escrevo isso, do alto do meu privilégio, é porque espero que minha história inspire cada um de nós a pensar em como podemos fazer diferente — por nós mesmos e pelos outros.
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