IA: ferramenta para a equidade de gênero ou mais um obstáculo?
A baixa representatividade feminina, automação e soluções enviesadas são alguns dos impactos que a IA traz para as mulheres no mercado de trabalho
IA: ferramenta para a equidade de gênero ou mais um obstáculo?
BuscarA baixa representatividade feminina, automação e soluções enviesadas são alguns dos impactos que a IA traz para as mulheres no mercado de trabalho
Lidia Capitani
30 de outubro de 2024 - 15h02
As mulheres representam apenas 29% dos cargos de P&D (pesquisa e desenvolvimento) em ciências em todo o mundo, conforme destaca o relatório “Os efeitos da inteligência artificial na vida profissional das mulheres”, da Unesco. Esse desafio, adicionado a outros como a desigualdade salarial entre os gêneros, a dificuldade das mulheres avançarem para posições de liderança e a baixa representatividade feminina nas áreas STEM, resulta num cenário desfavorável para o futuro das mulheres no mercado de trabalho.
Além disso, com o avanço das tecnologias de inteligência artificial, o relatório da Unesco levanta duas questões importantes: “como será o mercado de trabalho de amanhã para as mulheres? Estamos efetivamente aproveitando o poder da IA para diminuir as diferenças de igualdade de gênero ou estamos deixando essas diferenças se perpetuarem ou, pior ainda, aumentarem?”
Natalia Amancio, executiva de industry go-to-market no Google Cloud, traz uma reflexão sobre a chegada da IA: “Hoje, estamos vendo uma grande transformação no mercado de trabalho com a chegada da inteligência artificial. Se a gente comparar, é como quando a internet mudou totalmente nossa forma de trabalhar e de lidar com tarefas do dia a dia. A IA tem um potencial semelhante de alterar nossa rotina e o jeito de viver”, explica.
Por ser uma tecnologia de propósito geral (GPT), que transforma diversas áreas da vida humana, a inteligência artificial tem imenso potencial para o mercado de trabalho. Porém, cabe às empresas, lideranças e colaboradores saberem utilizá-la de maneira justa e transparente. Adicionando a lente feminina, isso perpassa por uma série de questões que impactam a formação, inclusão e desenvolvimento das carreiras de profissionais femininas.
O relatório da Unesco aborda com profundidade os diversos desafios que a IA traz para o mercado de trabalho, em especial na perspectiva de gênero. O primeiro gargalo apontado pelo estudo é a diferença de conectividade e habilidades digitais entre homens e mulheres. Globalmente, enquanto 55% dos homens têm acesso à internet, este número cai para 48% para as mulheres.
“A divisão baseada em gênero relativa à conectividade e às habilidades digitais diminui a capacidade das mulheres de procurar e se candidatar a empregos, garantir um trabalho e prosperar em um emprego existente, sem mencionar a oportunidade de adquirir conhecimento e habilidades em preparação para um possível emprego”, reforça o estudo.
Já quando falamos de trabalhar diretamente com o desenvolvimento de tecnologias de inteligência artificial, as mulheres enfrentam dificuldades adicionais. “Em geral, quem trabalha com IA vem de uma formação em exatas. Mas o que acontece é que muitas mulheres não estão nessa área, e, pior, mesmo as que têm essa formação acabam sendo questionadas sobre sua capacidade ou conhecimento”, afirma Natalia Amancio.
O texto do estudo da Unesco aponta que as mulheres representam menos de 20% entre os autores de publicações científicas na base de dados Scopus. Além disso, acrescenta que, segundo Fórum Econômico Mundial, as mulheres com habilidades de IA são menos propensas do que os homens a ocupar cargos superiores.
“Outro ponto é o impacto da carga de trabalho doméstico, que recai desproporcionalmente sobre as mulheres e limita seu tempo para adquirir novas habilidades em áreas tecnológicas, que evoluem rapidamente. Esse cenário traz um risco maior para a carreira das mulheres, que acabam com menos oportunidades de se qualificar nesse campo”, complementa Rita Wu, arquiteta, designer, pesquisadora e apresentadora da CNBC no Brasil.
Se elas não estão nas cadeiras de decisão e de desenvolvimento dessas tecnologias, existe o risco dessas soluções não contemplarem necessidades específicas das mulheres e de outros grupos minorizados, além de reforçarem desigualdades, vieses e estereótipos.
“Na IA, essa falta de diversidade nas equipes de desenvolvimento acaba perpetuando preconceitos e falhas em áreas críticas como a saúde. Sistemas de diagnóstico treinados majoritariamente com dados masculinos podem ter baixa precisão ao tratar doenças femininas ou ao considerar diferenças metabólicas relacionadas aos ciclos hormonais das mulheres. Isso não só afeta diretamente a saúde das mulheres como reduz a eficácia dos sistemas para um público essencial”, explica Rita Wu.
Sem uma revisão da base de dados sob a qual a tecnologia foi desenvolvida, ou reflexão sobre esses vieses, a IA pode reforçar estereótipos de gênero. Um exemplo citado pelo estudo da Unesco são as assistentes de vozes, como a Siri, que reforçam o estereótipo da mulher como cuidadora. Outro estudo destacou a existência de vieses de gênero em ferramentas como Chat GPT e Llama (da Meta), que associava nomes femininos a papeis tradicionais, relacionando-os a palavras como “lar”, “família”, “crianças” e “casamento”. Enquanto isso, nomes masculinos estavam associados a “negócios”, “executivo”, “salário” e “carreira”.
Outro desafio apontado pelo estudo é a falta de transparência na funcionalidade e nas saídas dos sistemas de IA. O relatório destaca como algumas ferramentas de IA funcionam como “caixa-pretas”, ou seja, seus processos internos são opacos, dificultando a compreensão de como eles chegam a determinadas decisões. A opacidade dos sistemas dificulta a identificação de vieses algorítmicos, como a discriminação por gênero. Além disso, as empresas, muitas vezes, não divulgam como seus sistemas funcionam, especialmente aqueles que influenciam áreas sensíveis como recrutamento.
“No recrutamento e na avaliação de desempenho, a IA pode ser usada para análise de currículos e entrevistas automatizadas, o que traz mais eficiência e pode reduzir vieses. Mas, se os dados usados no treinamento refletem preconceitos, há o risco de perpetuar desigualdades”, reflete Natalia. O relatório da Unesco também aponta que a IA interfere no direcionamento e na redação de vagas, reforçando vieses e impactando mulheres que buscam emprego.
Por fim, um desafio complexo e até polêmico é a automação de atividades que antes eram feitas manualmente, como os administrativos. “Os processos de automação afetam, primeiramente, cargos operacionais, onde há mais mulheres, o que aumenta a vulnerabilidade feminina diante da automação”, continua Wu.
Para mitigar esses problemas, as especialistas citam uma gama de ações que empresas e sociedade civil podem aplicar. O primeiro ponto é a garantia de times diversos entre os desenvolvedores dessas tecnologias. “Isso passa por analisar o funil de contratação e adotar estratégias ativas de recrutamento e retenção para garantir equipes diversas desenvolvendo IA”, destaca Amancio.
“Essa inclusão, portanto, não é apenas uma questão de trazer mais dados femininos para a IA, mas de desenvolver sistemas com uma perspectiva feminina desde o início. Precisamos de políticas que incentivem essa entrada, talvez até com medidas temporárias de inclusão, para que, no futuro, tenhamos um desenvolvimento mais equilibrado e justo”, continua Rita. Além disso, as empresas devem prestar atenção em seus sistemas de avaliação de performance que podem reforçar disparidades entre os gêneros e impactar a ascensão de talentos femininos.
“Essa definição [de performance] varia para homens e mulheres, então, mesmo com automação em processos de recrutamento, o que parece neutro pode acabar desfavorecendo as mulheres. Por exemplo, trabalhos voluntários em tecnologia ou mediação de conflitos no ambiente de trabalho são contribuições importantes, mas, muitas vezes invisíveis e pouco valorizadas”, afirma a apresentadora. Esse exemplo, inclusive, ressalta outro ponto importante sobre as carreiras femininas. Se, por um lado, essas habilidades interpessoais, ou soft skills, podem passar despercebidas pelas lideranças, por outro, são habilidades que dificilmente podem ser substituídas pela IA, tornando-se atrativas neste contexto.
Mesmo assim, a capacitação precisa estar na agenda da promoção de equidade de gênero na tecnologia. “Precisamos incentivar o interesse das mulheres em exatas e programação, inclusive para aquelas que pensam em transição de carreira. É aí que entram a sociedade civil e o governo, que podem fomentar programas de capacitação e mentoria para ajudar no desenvolvimento dessas habilidades técnicas”, afirma Natalia.
“Também destaco a importância de incentivos educacionais para aumentar a participação feminina em áreas como matemática, engenharia e ciências. Programas nas escolas e comunidades podem mostrar para essas meninas que a tecnologia é uma opção de carreira viável”, continua a executiva.
Para além de trazer e incluir mais mulheres e grupos de diversidade no mercado de trabalho, as empresas também precisam atentar para a retenção destes talentos. “Só contratar não basta; o ambiente de trabalho também precisa ser inclusivo. De nada adianta trazer uma mulher super capacitada se o ambiente não permite seu desenvolvimento e sucesso. Se for um ambiente hostil ao crescimento feminino, essa profissional vai acabar saindo”, acrescenta Amancio.
Por último, a auditoria e transparência sobre o desenvolvimento e aplicação dessas tecnologias é outro ponto chave para a promoção de soluções mais justas. “A transparência no desenvolvimento de sistemas, especialmente na inteligência artificial, facilita a representatividade e nos ajuda a entender como os dados e algoritmos funcionam, garantindo a explicabilidade desses processos. Isso também colabora para auditorias e regulamentações, criando uma base legal para a equidade. Precisamos de um uso justo, com ética claramente definida na regulamentação, para que os vieses sejam considerados não apenas como dados isolados, mas também dentro de todo o processo de desenvolvimento”, explica Wu.
O que também inclui a auditoria das bases de dados utilizadas para treinar essas soluções. “Um sistema de IA pode perpetuar preconceitos se a base de dados de origem já contiver vieses. Empresas, governos e outras instituições que usam IA precisam investir em bases de dados bem curadas e orientadas para mitigar esses vieses, pois uma entrada ruim gera uma saída ruim”, reforça Natalia.
A IA não aprende sozinha. Ela precisa da supervisão humana, não só para evitar erros e distorções, mas para combater as desigualdades e vieses. Por isso, a diversidade desde o início do desenvolvimento até na auditoria e regulamentação é fundamental para a mudança. “Ao combinarmos o trabalho humano com a IA, conseguimos evoluir. Embora a IA traga desafios, quando utilizada corretamente e com um uso justo, pode transformar positivamente esses processos”, conclui Rita.
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