Mulheres na criação: a árdua jornada por maior equidade
Na publicidade brasileira, presença feminina e maior diversidade ainda sofrem obstáculos. Letramento e intencionalidade são parte da resposta
Mulheres na criação: a árdua jornada por maior equidade
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Lidia Capitani
2 de maio de 2023 - 12h45
De acordo com o levantamento realizado pelo Observatório da Diversidade na Propaganda (ODP), 85% dos cargos de CEO das agências de publicidade são ocupados por homens, enquanto as mulheres representam apenas 15%. O que o estudo comprova é que quanto mais alto o cargo, menor é o nível de diversidade. Mesmo as mulheres sendo maioria dos profissionais da área, compondo 57% do total, a representatividade diminui conforme subimos a cadeia hierárquica.
O estudo “Publicidade Inclusiva: Censo de Diversidade das Agências Brasileiras 2023” foi realizado pela ODP em parceria com a Gestão Kairós. Ao todo, 28 agências brasileiras foram entrevistadas, com uma amostra de cerca de 6.266 funcionários. O que antes era uma questão nebulosa, com poucos dados atualizados, agora é trazido à luz para discussão.
Mapeamentos como esse são essenciais para a construção de um ambiente mais inclusivo, representativo da realidade brasileira e consecutivamente, mais igualitário. Como proposta, Keka Morelle, CCO da Wunderman Thompson, reforça a importância da colaboração e transparência das próprias agências sobre suas jornadas para a diversidade. “Seria muito importante todas as agências compartilharem as suas jornadas de equidade racial e equidade de gênero. Para mudar, precisamos ter visibilidade dessa situação, porque entendendo o tamanho do problema podemos propor ações e cobrar metas”, relata Morelle.
Para entender o contexto histórico da hegemonia masculina e branca entre as lideranças criativas, Laura Florence, fundadora do More Grls e Diretora Executiva de Criação da Havas Health & You Brasil, aponta como era a posição da mulher no princípio da publicidade no Brasil. Segundo a executiva, as mulheres sempre estiveram presentes na publicidade, desde a criação da área na década de 60. Nessa época, elas eram colocadas como a “garota propaganda” das marcas, atuando tanto como porta-voz, quanto como criativa. Entretanto, mesmo ocupando um lugar de destaque, ela era usada como atrativo. “Uma moça simpática, bonita, apresentando um produto. Então, não dá para dizer que naquela época as mulheres tinham uma presença maior, porque o significado dessa presença naquele contexto era completamente diferente”, afirma.
A partir de então, a profissão evoluiu, mas o poder da criatividade foi direcionado para os donos das agências, posição ocupada majoritariamente por homens. Décadas depois, a situação pouco mudou. “Muitas agências ainda estão com este formato: homem branco, hetero-cis, num espaço de poder e comandando, porque sempre foi assim”, reflete Renata Leão, Diretora Executiva de Criação da David.
No entanto, para a Vice-Presidente do Clube de Criação Gabriela Moura já não existem mais desculpas para a falta de diversidade e equidade de gênero nas agências. “A gente não tem mais desculpa para apartar as pessoas negras e as mulheres da liderança. Antigamente se falava muito da falta de capacitação técnica. Mas isso já vem mudando há 20 anos, como efeito das políticas de afirmativas, como as cotas raciais”.
Além de ser um espaço historicamente ocupado por homens, os ambientes das agências ainda perpetuam os mesmos valores e dinâmicas, que fatalmente excluem grupos diversos, inclusive as mulheres. Como apontado por Laura Florence, a responsabilidade pelos cuidados que recaem sobre as mulheres molda a percepção sobre sua performance, a ponto de considerarem ocupações incompatíveis. “A gente sabe que existe o ‘overworking’, com uma carga horária enorme. Ainda mais para as mulheres, já que elas fazem a maioria do trabalho doméstico”, reflete.
Na mesma linha, a dedicação à família ainda é vista como um ponto negativo para a carreira das profissionais femininas. Renata Leão destaca um exemplo que vivenciou. “Eu sei de duas pessoas, um homem e uma mulher que disputavam a mesma vaga de Head de Business numa agência. A candidata mulher com três filhos e uma segunda empresa. Ele com nenhum filho e três empresas. No final, o homem foi contratado porque foi visto como interessante, porque tinha vários ‘businesses’. Já no caso da mulher, acharam que ela não daria conta, porque tinha filhos e uma outra empresa”, expõe Leão.
Além da extensa jornada de trabalho, ainda existem outras dinâmicas, identificadas como micro agressões, que podam a motivação e a confiança das mulheres e dos grupos de diversidade. “O homem branco hetero, cis aprendeu desde pequeno a empurrar, bater e entender o espaço de agressividade. Não estou falando de masculinidade tóxica, mas de um processo de construção de si. Já a mulher sempre foi criada para evitar o conflito, então essas pessoas que estão num espaço social subrepresentado estão ali pedindo licença”, descreve Renata Leão.
Por consequência, quando vagas para cargos de liderança de criação são abertas, a competitividade entra em cena, assim como os mesmos mecanismos de perpetuação do domínio masculino. “Eu lembro de agências em que trabalhei onde as vagas na criação não ficavam abertas por mais de dois dias, porque já tinha uma fila de amigos dos ‘caras’ para ocupar. As mulheres estavam ali como assistente de arte ou redatora júnior”, conta.
Isso porque os parâmetros utilizados para seleção e promoção de talentos ainda segue um padrão que privilegia e propicia a manutenção da hegemonia masculina. “Na hora em que falamos sobre qualificação de mulheres para as áreas criativas, ainda seguimos critérios de premiações, passagem por agências famosas, indicação de pessoas e isso vira um ciclo vicioso”, afirma Laura Florence. “Já critérios como, por exemplo, capacidade de liderar, gestão de conflito, comunicação, outras coisas que, além da criatividade, são trazidas para a mesa quando consideramos contratar um líder, na criação parece que elas somem”.
Não é incomum perceber que algumas empresas mascaram a representatividade de seus times. O que existe é uma concentração de profissionais femininas em certas áreas e a falta em outras. “As mulheres na liderança estão mais nichadas em áreas como atendimento, planejamento, RH, em comparação disciplinas ligadas à criatividade”, ressalta Laura Florence.
Um modo de transformar essa lógica é pautar a diversidade nas premiações e juris, a fim de transformar os critérios criativos de julgamento. “A gente vê o impacto de um júri mais diverso nas premiações. Porque esse conjunto de pessoas escolhem trabalhos que são mais representativos, que têm mais verdade e que são mais criativas. Ter um olhar diverso também é importante na hora do julgamento dessas peças”, ressalta Keka Morelle.
Sob o ponto de vista racial, Gabriela Moura destaca como o assassinato de George Floyd gerou um movimento global de valorização das pessoas negras. Entretanto, a crise econômica mais recente foi a grande responsável pelo retrocesso da pauta. “As ondas de layoffs estão atingindo majoritariamente mulheres e pessoas negras. Isso que a gente tem chamado do fim do efeito George Floyd. E eu acho que a gente está sentindo isso na nossa indústria”. O conceito ao qual Gabriela se refere, o fim do efeito George Floyd, foi estudado e popularizado no Brasil por Joana Mendes, Presidente do Clube de Criação.
“A gente acaba esquecendo o que está na base do iceberg, que são as micro agressões. Não vale de nada que uma companhia ou uma agência crie incontáveis grupos e campanhas, se da porta para dentro, as pessoas negras estão em sofrimento psíquico”, destaca Moura. “Quando as pessoas negras são interrompidas em reuniões; quando os nomes delas não vão para as fichas das campanhas que elas ajudaram a compor; quando elas têm as suas opiniões invalidadas ou tidas como opinião de segunda categoria”.
“Eu entendi que de todas as rotas que eu tinha para subir, prêmios era a que eu tinha mais controle. Então, eu precisei estar em agências que trabalhavam com esse formato e ter clientes que gostam de prêmios para poder subir na carreira”, conta Renata Leão. Apesar de parecer que esse é um caminho possível para todos, a jornada não foi tranquila.
“A escalada de uma mulher é muito mais longa em comparação ao homem. Eu vejo pessoas que começaram na mesma época que eu, em várias agências, mas em sete, oito anos, já eram diretores de criação, eu demorei 17”, revela. Além da longa estrada, a diretora ainda enfrentou dificuldades para criar network. “Eu era uma mulher lésbica num espaço extremamente heteronormativo, isso me fazia sentir desconectada e dificultava para que eu pudesse criar relações com aquelas pessoas”.
“Muito embora estamos vivendo numa onda de diversidade, as agências ainda não estão acostumadas a lidar com a diversidade e com as pautas que esses grupos específicos possuem. Eu sinto que as agências colocam mulheres e pessoas negras nesses cargos esperando que elas ajam como os homens brancos de 1990”, descreve Gabriela Moura.
Se há alguns anos a desculpa era falta de capacitação, hoje, o cenário é bem diferente. “A gente tem pessoas muito bem capacitadas, muito experientes, que têm vontade, que apresentam seus trabalhos. A prova disso é o sem número de projetos pessoais independentes que a gente vê por aí, porque essas pessoas não estão inseridas no mercado de trabalho”, continua.
Além de garantir contratações intencionais focadas em diversidade, Laura Florence destaca como a estratégia sanduíche, de atuar tanto na base quanto no topo, pode ser o caminho mais rápido e efetivo para mitigar os gaps da indústria.
“Com uma liderança gerida por mulheres, é mais fácil transformar a cultura do que ao contrário. Ao fazer uma contratação intencional, precisamos ainda de 15 anos para que essa pessoa tenha poder e autonomia para fazer transformações culturais. Então, a estratégia sanduíche seria mais eficiente. Ao mesmo tempo que traz as pessoas para a base, também trabalha no topo da pirâmide, e aí aceleramos esse processo”, diz Florence.
A presença de uma mulher não altera apenas o quadro numérico e os índices de representatividade. Existem impactos qualitativos e de difícil mensuração do trabalho de uma liderança feminina nos bastidores das decisões. “Eu não estou impactando só o ambiente da minha empresa, estou impactando as mensagens que são transmitidas”, reforça a fundadora do More Grls.
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